A vida começa e acaba num sopro

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Natacha Cabral

Seria mesmo necessário o grotesco e interminável desespero do ser humano? Seria mesmo necessário vivermos em retrocesso? Talvez… Não sou nenhum guru nem eremita no assunto, daí que não possa dar nenhuma resposta óbvia, mas gosto de pensar sobre o que nos atormenta com o intuito de compreender. É, hoje e mais do que nunca, que se vive a “doença da solidão”. Mas não culpem já o Covid por tal coisa, pois a culpa já perdurava, e quem mais culpar se não nós mesmos? 

Os tempos modernos vieram para nos convencer que estamos melhor, e mais seguros, a sós. Que cada um tem de trilhar o seu caminho sozinho. Que deve sofrer das suas dores calado, resolver silenciado os seus problemas e conquistar isolado os seus troféus. Que bela treta! 

Mas o pior, é que muitos aceitaram estas ideias de bom grado. Foi com grande rapidez que se aniquilou o conhecimento das antigas tribos, ou dos grupos que viviam em proximidade e partilha. Tudo, porque alguém entendeu que partilhar não é opção. E eis que nasceu uma nova moda: competir. Competimos todos os dias: connosco, com o vizinho do lado, com o colega de trabalho, com o rival desportivo, com o país vizinho ou distante e mais grave que tudo isto, com a nossa verdadeira e ancestral essência.

Fizeram-nos acreditar que ter o carro mais caro do bairro é o que importa. Ou a roupa mais cara, o título mais reconhecido, o maior número de seguidores, o maior número de medalhas, a maior conta bancária, ou a casa mais luxuosa. A lista é infindável pois as tentações também…

Mas, o que aconteceu com o maior número de relações sinceras? Não. Não estou a falar de colegas e “amigos do Facebook” ou dos fãs do Instagram. Estou mesmo a falar de conexões valiosas. O que aconteceu a esses valores? Quantos de nós vivemos num bairro mas não conhecemos ninguém? Quantos de nós vivemos num prédio, mas não vemos ninguém? Quantos de nós precisamos de ajuda, mas não temos ninguém? Pois é. Não é por acaso.

A sociedade moderna ensinou-nos o significado da segregação. Branco é branco, não mistura com preto. Pobre é pobre, não mistura com rico. Depressivo é depressivo, não mistura com perfeito. 

Perfeito? Estamos todos a anos luz da perfeição e poucos conhecem o verdadeiro entendimento da vida. Não fomos feitos para viver em isolamento e não é por acaso que se diz por aí que “a união faz a força.”  Vivemos tontamente uma triste mentira ao acharmos que a nossa vida é melhor ou pior que a do vizinho do lado, e é de lamentar que num mundo onde habitam biliões de pessoas tenhamos que nos sentir sozinhos em algum momento da nossa vida. Se ao menos tivéssemos tempo de olhar para o lado, rapidamente entenderíamos que o outro tem os mesmos problemas que eu ou, pelo menos, parecidos. Que partilha da mesma dor, das mesmas angústias, dos mesmos medos.  Teimamos em achar que em ordem para resolver as nossas dores emocionais, o melhor é o isolamento e o comprimido milagroso, mas mal sabemos nós que a cura passa pela reconexão humana e na proximidade com a natureza.

Se ao menos soubéssemos… “Se ao menos eu soubesse que o vizinho me poderia ajudar, eu teria falado. Se eu soubesse que ele sofre escondido, eu teria ajudado. Se eu soubesse que afinal sou valioso, eu teria ficado. Se eu soubesse de tudo isto, não teria partido… Se ao menos eu soubesse.”

E eis que chega aquele dia, o dia em que aquela pessoa, aquele familiar, aquele amigo, aquele amor, aquele alguém deixa a sua fisicalidade e parte em direção ao além. Esse é o dia em que a ficha cai. Cai a ficha, cai o piano, cai a banda toda. Tudo desmorona. Mas a ficha deveria ter caído muito antes desse dia, porque agora o tempo esgotou. Agora o tempo fez-se tarde. Agora, o que deveria ter sido dito, feito, revelado, perdoado, corrigido e vivido não tem mais lugar. Há uma espécie de loop repetitivo neste nosso comportamento e, estranhamente, insistimos em não aprender, pois o erro repete-se vezes sem fim. 

Mas há uma explicação para isto. O problema não está na nossa não capacidade de aprender. O problema é que muitos poucos se disponibilizam para enxergar a verdade – a verdade é que 99% de nós passamos o tempo a perseguir as coisas erradas e na ordem contrária, e o tempo não para. Não para nem para ti, nem para mim, nem para o outro. O tempo sempre cobra as suas dívidas e nem sempre vem a tempo. E às vezes faz doer para c… Assim que me pergunto: por quanto mais tempo vamos continuar a viver assim? A não viver? A aguardar ilusoriamente a chegada da morte? A defender afincadamente a eternidade temporal? A preferir o orgulho ao perdão? A preferir o medo à coragem? A preferir a mentira à verdade? A preferir a superficialidade à vulnerabilidade? E a preferir a solitude à conexão?

Meus caros, a vida é curta e o espaço é eterno. Está tudo ao nosso dispor para vivermos uma vida com sentido, com honra e dignidade. Há pouco tempo para narizes empinados, egos feridos e conflitos mesquinhos. Temos, em nós, toda a sabedoria necessária para fazermos melhor, para sermos melhor e para morrermos melhor. Basta querer e olhar ao redor, porque o outro não é assim tão diferente. Nada no universo é uno, nem nada é imutável. Somos um todo com tudo que nos rodeia, uma pequena gota de água num mar infinito de vida. E, no fundo, todos sabemos do nosso destino final, pois não há como evitar o ciclo vida-morte-vida, mas há, com certeza, como evitar as partidas dolorosas ou as culpas indesejadas quando sabemos que cumprimos o melhor que podíamos, com o pouco ou muito que tínhamos. Sim, somos assim tão insignificantes, contudo, podemos significar o mundo para alguém – algo que vale a pena pensar sobre. Finalmente, creio que quando os tais 99% de nós puderem entender que a vida é feita e valorizada através da interligação e da cooperação, talvez a nossa teimosa e insistente ideia que o caminho é melhor a sós mude. Talvez, nesse dia, a banda não caia, mas toque uma verdadeira epifania de mudança. 

Agora, pensa: onde nos levou, e nos levará, esta atitude segregadora e egocentrada?

P.S. – há um livro, agora disponível também em filme, muito bem explicativo deste raciocínio, chama-se “Um homem chamado Otto”. Aconselho.

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