A vida de Viana pela mão de Amadeu Costa

Author picture

Amadeu Costa, o Senhor Amadeu, deve ter sido a pessoa mais estimada em Viana no final do século XX, graças à enorme simpatia que distribuía por todos, e à ainda maior capacidade de trabalho e de envolvimento em tantas coisas muito queridas aos vianenses: as Festas, o Folclore, a Ribeira, a Fábrica de Loiça da Meadela, o Traje e o Artesanato ou o Teatro. 

Em todos estes campos o Senhor Amadeu esteve presente e deixou a sua marca… e amigos, muitos amigos, que faziam com que “pessoa a quem fosse dado percorrer a cidade ao lado de Amadeu não podia ir com pressa. Porque constantemente parava aqui e além, a falar a um, a responder a outro, a cumprimentar” (p 105).

Por isso, em 2020, comemorando o centenário do seu nascimento, decidiu a Câmara editar-lhe um livro de homenagem. A escrita da obra vinha já sendo pensada pelo seu filho António Carlos, mas uma doença traiçoeira não o deixou terminar a tarefa, ficando Helena Adrião Brito, a sua mulher e nora do senhor Amadeu com esse encargo. Dito isto, podemos pensar que uma edição de homenagem ser feita por familiares é uma má ideia, por facilmente poder cair em sentimentalismos: pois bem, nada de mais errado com o que se passa com este livro. Aqui, a proximidade serviu apenas para um maior conhecimento das situações relatadas e um melhor acesso a informações e documentos, resultando num livro fundamental para conhecer o homenageado e, através dele ficar a conhecer melhor a vida vianense de, praticamente, todo o século XX, num registo de crónica onde as histórias pessoais se misturam com a história da própria cidade e do país. 

A obra divide-se em 23 capítulos que acompanham as várias facetas do percurso de vida do senhor Amadeu, sempre documentado com uma riquíssima conjugação de fontes, que vão de textos antigos à bibliografia mais actualizada, de folhetos de exposições a poemas; de notas manuscritas nas costas de fotografias a dedicatórias em livros; de fotografias pessoais a recortes de jornais – que a qualidade do design de Rui Carvalho soube organizar. Posso confidenciar que tive a oportunidade de ver a sala onde o livro foi escrito e de perceber o caos organizado onde toda esta documentação estava espalhada, em amontoados cuidados, que serviram de base a este trabalho minucioso que sustenta uma escrita colorida e cativante. 

O livro começa com a infância de Amadeu, nos anos 1920, na Ribeira, homenageando os seus pais, Manuel José da Costa, heroico e exímio piloto da barra e Aurora, dona de casa e rendilheira, que personificam o “ser-se da Ribeira” (p.33). É com Amadeu que percorremos a vida da cidade e do bairro: os melhoramentos em Santa Luzia, no Templo e no Hotel, a dragagem do rio, as greves dos operários nos primeiros anos do Estado Novo, a pneumónica, os clubes (o Vianense, o Taurino e o Viana Futebol Clube), os lagosteiros, os banhos na paria norte e na doca, e até a criação caseira do, “com licença”, porco no quintal, para equilibrar o orçamento familiar de um tempo “que não renego, mas não desejo aos novos meninos” (p.38)

Depois acompanhamos um percurso profissional começado aos 12 anos, como tipógrafo aqui, na Aurora do Lima, depois na secretaria da Câmara Municipal e como guarda-livros no Teatro Sá de Miranda e na Fábrica de Loiça da Meadela. Profissões que, para outros, seriam áridas e entediantes, mas que o livro nos explica que Amadeu foi sempre capaz de aprender com a curiosidade que o acompanhou toda a vida: no jornal começou a redigir notícias, na Câmara aumentou o seu conhecimento sobre Viana e o concelho, e no Teatro e na Fábrica aproveitou o contacto com artistas para desenvolver a sua enorme sensibilidade e gosto artístico. 

Amadeu foi também um amante da Liberdade, por exemplo apoiando as candidaturas de Norton de Matos e de Delgado nos tempos difíceis da ditadura, o que lhe valeu uma visita aos calabouços da PIDE, para, logo após o 25 de Abril, não fugir às responsabilidades cívicas, assumindo a vereação do Turismo na primeira Comissão Administrativa, e aqui é relatado o carinho com que deu início, por exemplo, à Escola Maestro José Pedro, ou à recuperação do Hospital Velho.

Mas foram as facetas de investigador curioso e de comunicador que mais marcaram a sua vida. Amadeu não era um investigador de fundo, como os títulos “Bric à brac” e “Manta de retalhos” que deu às suas colaborações na revista “A Falar de Viana” dão a entender, mas soube juntar ao conhecimento das tradições que ouviu na sua Ribeira o dos trajes que adquiriu quando, na sua passagem pela Câmara, percorreu as aldeias, fazendo registos cuidados de trajes e tradições, com fotos e legendas explicativas. Amadeu era “brilhante a apresentar a semântica de uma qualquer tradição, exímio a desmontar a génese de um costume, a descodificar os meandros da etnografia, do desenho de um traje, da concepção de um artefacto. Rico de pormenores, inovador na interpretação pedagógico no contar, simples na erudição” (p116).

Este seu dom de comunicar levou-o a escrever artigos, fazer exposições um pouco por todo o país e mesmo pelo estrangeiro, participar em visitas guiadas em situações de gala e espectáculos televisivos. Foi assim que lidou com importantes nomes da vida cultural, como António Pedro, Ruben A., Amália Rodrigues, Beatriz Costa, Olga Roriz ou Jorge Amado.

De tudo um pouco fez, e sempre com grande criatividade, mas gostava de salientar duas suas obras: as Feiras de Artesanato, com a originalidade de os artesãos trabalharem à frente dos visitantes, mostrando a sua arte, onde Amadeu queria “glorificar, divulgar e apoiar financeiramente os trabalhos de verídica raiz popular, fruto da intuição artística e da capacidade inventiva do povo na sua luta diária pela sobrevivência” (p.165) e as inovações de eventos que introduziu nas Festas da Senhora d’Agonia: o Cortejo da Mordomia, o Cortejo Histórico separado do Etnográfico, o Vamos para a Romaria, a renovação da Festa do Traje ou a repetição das Alvoradas de bombos, gigantones e cabeçudos na Praça ao meio dia, momentos que hoje consideramos fundamentais na Festa.

Amadeu sempre se rodeou de personalidades importantes da vida vianense, como o maestro José Pedro, Ribeiro da Silva, Gaspar Castro, Manuel Valdez Sobral, Parente da Cruz, Manuel Freitas, Joaquim Ribeiro, Olímpia Pinto da Rocha e tantos outros para, usando a sua bonomia única, fazer passar opiniões, em verdadeiros “grupos de pressão” que ajudaram a preservar trajes, manter o Teatro Sá de Miranda e o Hospital Velho, a criar o Museu do Traje ou a melhorar as Festas da Senhora d’Agonia. Não é coisa pouca, convenhamos.

 Este livro espelha como “o olhar de Amadeu sobre Viana era de apaixonado insaciável no enleio físico e espiritual com o objecto da sua paixão (199) e resulta, numa belíssima homenagem ao senhor Amadeu, que estas breves linhas apenas podem aflorar, para convidar à sua leitura integral.

A forma inteligente como está escrito, transforma o senhor Amadeu numa espécie de narrador que vai atravessando os diferentes tempos de vida da cidade de Viana, como se fosse, ao mesmo tempo, personagem e autor, numa magnífica crónica da vida vianense ao longo do século XX, que se lê com um enorme deleite que temos de agradecer aos autores. 

 

João Alpuim

Outras Opiniões

Os leitores são a força e a vida do nosso jornal Assine A Aurora do Lima

O contributo da A Aurora do Lima para a vida democrática e cívica da região reside na força da relação com os seus leitores.

Item adicionado ao carrinho.
0 itens - 0.00

Ainda não é assinante?

Ao tornar-se assinante está a fortalecer a imprensa regional, garantindo a sua
independência.