Adeus à gravata

Author picture

Uma gravata ao pescoço de um jovem, ensinando-lhe a fazer o nó, representava uma breve iniciação à vida social adulta. Esse adereço-de-vestir era, depois, mantido no quotidiano com esmero e orgulho. Nas fotos a-preto-e-branco das manifestações estudantis do Maio de 68 em Paris ou das manifestações populares do 25 de Abril em Lisboa, vê-se a maioria dos jovens de gravata posta. Nas fotos a sépia do início do século passado ou a preto-e-branco até meados dessa época, todo o tipo de cidadãos que fazia jus à respeitabilidade, por modesto que fosse, aparecia em público com gravata. Assim vejo meu avô nas fotos de quando jovem, tal como os seus contemporâneos, mesmo até os que calçavam habituais tamancos. Nas sessões de apresentação dos candidatos à Assembleia Nacional, nos tempos de Salazar e Caetano, vê-se a multidão engravatada, tanto os oposicionistas como os situacionistas. Esse estatuto social da gravata passou à história. O declínio deste distintivo da indumentária acompanha a irrupção de novos estilos e hábitos e desde há muito ela não é mais o símbolo identificador da gente respeitável, sinal de distinção e de pertença de classe, já que até os mais execráveis mafiosos e bandidos descaradamente continuam a usá-la. Onde é mais notório e caricato esse declínio é entre os executivos e os políticos que, cada vez mais entre nós, rejeitam aquele símbolo com que dantes os cidadãos de reconhecido nível social, obrigatoriamente, se apresentavam em público. A primeira figura política, após o 25 de Abril, a aparecer sem gravata entre os seus pares, foi Pereira de Moura, ministro nos 1º e 5º governos provisórios, mas que tinha “algumas gravatas, bem bonitas até (…), para usar em certas ocasiões”, nomeadamente em actos governamentais. Depois foi o Louçã, o único que no parlamento não a usava: as suas visíveis jugulares ingurgitadas de raiva aos burgueses impediam-lhe colarinhos apertados com gravatas.

Este novo estilo foi-se generalizando na classe política europeia, consolidando-se há uma década. O mais mediático foi Varoufakis, ministro das finanças do governo grego de Tsipras, este 1º ministro sem-gravata. Depois destes, Pablo Iglésias – mais parecido a um sem-abrigo que a líder de Podemos – vice-1ºministro sem gravata que recusava pôr gravata, mesmo se recebido pelo Rei de Espanha. Outros usam-na ou dispensam-na conforme a conveniência: usam-na nos gabinetes dos banqueiros; trocam-na pelo boné-de- tratorista entre o povo feirante.  Os altos cargos da governação usam-na por hábito: como Marcelo, a plantar árvores, a provar vinho ou num pé-de-dança; ou Trump, com aquelas gravatas até ao púbis como um ceptro fálico.

Agora a gravata é apanágio de dirigentes do futebol, treinadores e comentadores, aparecendo assim nos horários nobres dos telejornais, ou nos relvados no meio dos ases  em calções, ou nos bordéis de luxo que frequentam. Exibem-na como prova de homens-de-bem e das coisas sérias da vida, querendo aparentar respeitabilidade em meios onde campeiam corruptos, arruaceiros e marginais, com quem convivem e compactuam.

Enquanto isto, vão-se extinguindo na Praça Pública os clássicos símbolos diferenciadores, conduzindo a maioria à fasquia rasca: um ignorante arrieiro desancando um insigne filósofo, confere-lhe “aprovação com distinção e louvor”; pele borratada e roupa rasgada será marca de elegância. Então, andar na rua de gravata ao pescoço, será tão disparatado como andar de funil na cabeça. 

Mário Vale Lima 

O autor escreve conforme o anterior acordo ortográfico 

Outras Opiniões

Os leitores são a força e a vida do nosso jornal Assine A Aurora do Lima

O contributo da A Aurora do Lima para a vida democrática e cívica da região reside na força da relação com os seus leitores.

Item adicionado ao carrinho.
0 itens - 0.00

Ainda não é assinante?

Ao tornar-se assinante está a fortalecer a imprensa regional, garantindo a sua
independência.