Tal como o seu contemporâneo Ben Shahn, Alice Neel fez da causa dos oprimidos, dos anónimos refugiados, dos exilados e auto-exilados, dos marginalizados e dissidentes, o seu estandarte e a sua razão de existir e de ser artista. Tal como Shahn, Alice Neel veio ao mundo pela porta pequena e sempre teve de comer o pão que o diabo amassou para poder trabalhar e sobreviver (V., p.f., o artigo “XIII. Shahn”, na rúbrica “Amados Quadros” d`”A Aurora do Lima” N.º 15, Ano 167, de 28.04.2022).
Quando, em 1953, Alice Neel pintou o genial retrato de sua mãe (“A Última Doença”, Óleo s/ Tela), que é um pungente testemunho de verdade e de humanidade, geralmente insuportáveis para o vulgo que vive esmagado pelas mecânicas sociais, pelos estereótipos culturais e a permanente lavagem ao cérebro, estava já certa de que se estabelecera para o seu futuro, e em definitivo, um percurso original que vinha dos anos 30. E é curioso ver que, com as mesmas coordenadas que nortearam a produção do retrato de sua mãe, em 1953, e que eram magnânimas, poderosas e veneráveis, virá, em 1980, a pintar um dos seus últimos quadros, o “Auto-Retrato”, com os seus sofridos 80 anos de idade à flor da pele.
No “Auto-Retrato” representa-se sentada “incorrectamente”, como já era habitual nos seus retratos desde os anos 30, nua e da forma menos convencional possível. Empunha um pincel e, na outra mão, um pano, seus companheiros diários de trabalho. Dá primazia à verdade (realismo) do momento e à exuberante comunicação da modelo (expressionismo). Alice Neel sempre se assumiu como “uma colecionadora de almas”. A sua realidade concreta, o amor à verdade circunstancial e psicológica, a sua atitude de desafio em relação às normas sociais, culturais e estéticas, estão aqui genialmente representadas.
Temos de entender que o retrato como género artístico tinha sido absolutamente cilindrado pelo Abstraccionismo, aliás como todas as formas de Figurativismo. E que só o retorno à figuração na cena artística americana (sobretudo em Nova Iorque, onde a artista vivia), acompanhada pelas vagas militantes do Feminismo mais radical nas décadas de 60 e de 70, possibilitaram a “ressurreição” do retrato como género e a aclamação de Alice Neel como uma das mais importantes artistas desse mesmo género, desde sempre.
A artista, de forma espontânea, nunca deixara de privilegiar o seu círculo mais íntimo, família e relações amorosas, as suas relações de vizinhança e companheirismo, como sendo os temas eleitos do seu trabalho. No início, nos anos 30, ela preferia pintar homens a pintar mulheres porque sabia que os regimes ocidentais tinham pré-determinadas “funções” tanto para os homens como para as mulheres, mas que a estas estava dirigida – sobretudo em Arte – a “obrigação” de se mostrarem como “objectos de desejo”, anónimas, passivas, vulneráveis, sobretudo “sem idade” e dentro dos cânones aconselhados pelo Poder Patriarcal. Nessa mesma época, decidiu combater, contradizer e até mesmo satirizar essas “normas” de carácter patriarcal, quebrando a polaridade que com elas se impunha, destruindo a célebre dicotomia “anjo/demónio” como referencial feminino. E chegou aos anos 60 pintando mulheres autênticas, activas, donas e senhoras do seu corpo e do seu destino, e testemunhos de vida notáveis (porque todas as vidas o são), pintando mulheres grávidas, sós ou acompanhadas pelos seus homens, pintando até casais na intimidade, exaltando a sexualidade e a subversão. Exaltando a verdade, afinal. Datada de 1935, uma sua aguarela, “Alice Neel and John Rothschild in the Bathroom”, vem a tornar-se uma obra carismática e bem ilustrativa desta sua vontade de elevação da verdade dos seres humanos sobre a Terra que os viu nascer.