Há muito pouco tempo que tive conhecimento desta frase lapidar. E mais: que pertence a Santo Agostinho. Nunca a tinha ouvido em quase oitenta anos de vida, começados quando a II Grande Guerra estava no apogeu da sua brutalidade. Mas esta sentença não é assim tão concisa e curta. Santo Agostinho acaba por explicar, embora também sucintamente: “Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos”
Ora eu tomei conhecimento deste bendito pensamento, quando, há dias, lia a crónica de um clérigo português considerado ultraconservador, o qual batia, com ironia mordaz, nos padres jovens e mentalmente modernos da diocese de Lisboa, capazes até de citarem tão ousado pensamento e, ainda para mais, de um doutor da Igreja e Santo: o já citado Agostinho, bispo de Hipona.
Mas, goste ou não goste o azedo clérigo, é assim mesmo. Trata-se, na minha modesta opinião, de um princípio evangélico: ama e faz o que entenderes, mas sempre com amor. Ora, o tal clérigo ultraconservador é, pelo que leio de sua autoria, pessoa de leis, de muitas leis. Tem de estar tudo escrito, com uma minuciosidade doentia, pois, sem essa particularidade, está, para esse tipo de pessoas, tudo errado. Em matéria religiosa, esse legalismo (e consequente justicialismo) é exagerado e tacanho. Tão tacanho, tão tacanho que não tem em consideração a célebre frase de Jesus Cristo: “Os 10 mandamentos resumem-se a dois: ama a Deus sobre todas as coisas e (segundo lugar) ao próximo como a ti mesmo”
Muito provavelmente, uns noventa por cento dos católicos, mesmo os ditos tementes a Deus e praticantes escrupulosos, nunca terão lido ou até sabido da existência do Catecismo da Igreja Católica, calhamaço esse que é composto por 2865 densos artigos (ou parágrafos) e o seu compêndio, um número exagerado (para um resumo) tem 598 artigos! Em matéria de legislação canónica ainda há a somar o Código de Direito Canónico, com um total de 1752 cânones (artigos), havendo a acrescentar mais uma centena de páginas (um quarto da edição oficial portuguesa) com apêndices diversos.
Ora, perante esta superprodução legislativa, quem se entenderá? Que tempo sobra aos responsáveis, que a si mesmos se crismam como “Ministros de Cristo”, para o estudo aprofundado e crítico dos evangelhos? Por outro lado, a hierarquia superior da Igreja nem se dedica ao estudo de outros conhecimentos e, claro, muito menos fomenta esses estudos, que considera meramente terrenos e dispensáveis.
No entanto, o teólogo e eclesiólogo Yves Congar, OP (Ordem dos Pregadores), a quem foi pedido um comentário sobre os resultados de um inquérito, que concluía termos chegado a um estado preocupante de “descrença atual”, deixou esta sentença: “A uma religião sem mundo, sucedeu um mundo sem religião”. Ora isto passa-se em 1935, ou seja, há precisamente 85 anos! E, agora, que diria Yves Congar, se vivo fosse?
Fiquemos com as palavras de um seu discípulo (se assim posso dizer), o teólogo português da mesma congregação, Bento Domingues (jornal Público de 8 de Novembro de 2020): “A ideia de ver em Deus um rival do ser humano é uma megalomania diabólica. Deus não quer reservar para si os segredos, os enigmas do universo. Investigá-los é tarefa humana. Devia ser esta a convicção da religião que recusa qualquer espiritualidade, que despreza o mundo em nome de Deus; que fecha os olhos para a beleza e para os enigmas do cosmos, para o calor do amor humano, para a importância da criação artística, para o valor da investigação científica, para os trabalhos de ganhar o pão com o suor do próprio rosto, para a competência em socorrer as vítimas das doenças, para os problemas grandes ou pequenos de governar uma casa ou um país num mundo cada vez mais globalizado”.
Abramos as portas ao calor do amor humano, porque tudo o que fizermos por amor e com amor é bem feito, mesmo que não seja perfeito. (Para continuar)