“Amados Quadros”

Américo Carneiro
Américo Carneiro

Pode ser num aquário, na terra ou no céu: – À primeira vista, parece que tudo se passa de noite e que estamos a sonhar pois que, embora reconhecendo de imediato alguns seres (peixes, plantas, antropomorfismos) e alguns objectos, como o relógio – do qual não conseguimos desviar o olhar – assim como a flor no alto direito, que parece destinada ao lugar de destaque que as crianças reservam habitualmente ao sol das suas composições, todo o resto faz parte de um mundo irreal, de uma vida de fantasia sem paralelo com as nossas experiências quotidianas. Um personagem espreita-nos, em baixo à esquerda, parecendo sair do seu contexto onírico que, por isso, se nos revela infinito, fazendo então com que os limites da composição (os limites reais, materiais, do quadro) funcionem como uma janela para um mais que insondável cosmos, um grandioso universo. 

   Sob o que se assemelha a uma “torre de relógio” foi colado pelo autor um quadrado de tecido fino e dele desce para a direita, em perfeita linha oblíqua, um traço fino sobre a cabeça e o(s) estranho(s) “olhar(es)” (sim, na verdade, são vários olhares) de um personagem bizarro com o qual, num ápice de cumplicidade, o observador “se identifica” e que está cercado de ricas construções hieroglíficas, obtidas por técnica de esgrafito – através do riscar hábil com um estilete as superfícies escuras depositadas sobre as cores vivas e variadas que estão subjacentes – e que, deste modo, revelarão formas e cromatismos vibrantes de cor e movimento. Paul Klee costumava dizer que gostava de “levar as linhas a passear”…

   Por esta época, anos 20, Klee criou o conceito de “divisionismo”, ou seja, para ele, claramente havia nas suas obras “formas individuais” e “formas dividuais”, sendo as primeiras as que não eram divisíveis e as segundas as que podiam ser divididas várias vezes. Assim sendo, a forma “relógio”, com seu ar autoritário, marcial até, seria uma forma “individual” e cada forma “peixe”, tomada por si mesma, também era “individual”, mas tomadas no seu conjunto (no “cardume”), passaria a ser “dividual” – o mesmo se passaria com o ser “que olha em todas as direcções”, que é claro que se trata de uma “forma dividual”… Este ser cria uma relação intensa com o relógio e sobre toda esta relação hierárquica (alto/baixo) paira a solenidade de uma metáfora, a do Mistério que envolve e enlaça o Tempo com as Existências de todos os Seres Vivos…

   Como Klee só Klee, todos mo dirão e eu assino por baixo. Mas, para se alcandorar às alturas de tão brilhante individualismo, este artista de excepção sempre se mostrou aberto a todas as influências. O Cubismo arrebatou-o, com o seu espírito revolucionário. O Surrealismo fascinou-o, com as suas portas abertas à libertação do subconsciente, com a sua promessa de aceder ao mundo dos sonhos e das infâncias perdidas. Mas foi com os companheiros Kandinsky, Macke e Marc, entre outros do Grupo Expressionista “Der Blaue Reiter” (“O Cavaleiro Azul”), e depois com a criação da “Bauhaus”, a Escola de Arte e Design de Weimar (Alemanha), que Paul Klee caldeou o aço da sua Alma de Artista (V., p.f., o artigo “XIX. Kandinsky”, na rúbrica “Amados Quadros” d`”A Aurora do Lima” N.º 28, Ano 167, de 28.07.2022).

   Formas e linhas “em movimento”, cores vivas e vibrantes, contrastes e ritmos dinâmicos, expressão de sentimentos e sensações com doses elevadas de abstraccionismo; associação livre de figuração e de abstracção, uso emotivo da cor; e a crença no “movimento” provocado pelos contrastes da cor e na detenção por esta de grande força simbólica e espiritual, trazem a assinatura indelével de seus queridos queridos amigos e companheiros, respectivamente Wassily Kandinsky, August Macke e Franz Marc…

   N.R. – O Autor não segue as normas do novo Acordo Ortográfico.     

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