O doutor, como é conhecido na área do seu estatuto de vivência, já maduro na idade, bastante dialogante e, em simultâneo, muito nostálgico, quando lhe permitem espaço de conversa começa, logo, a comentar variados acontecimentos que giraram, à sua volta, desde os tempos da meninice. Agora, para ele, são relíquias do passado, principiando, a relembrar:
– Por natureza cultivo a saudade. Sou do tempo, através do qual consegui manter na memória factos e características de uma época que passou, alicerçada pelos bons costumes, pela culinária sem truques, pela cultura de esforço, pela moral, pela segurança, pelas variadas descobertas e invenções, pelo desporto sem guerra e insultos, sendo a palavra um acto que não precisava de ser tutelado em cartório notarial.
Após leve pausa, a sorrir, continuava:
– Sou do tempo em que não se andava pelas ruas a falar sozinho com um telemóvel ao ouvido e, muito menos, quando se conduziam viaturas. Quem falava sozinho era alcunhado de maluco. – A rir, agora. – Sou do tempo em que se usava uma manivela, que se accionava, pelo exterior, a fim de substituir o motor de arranque dos automóveis, antes do início da marcha. Nessa época, quase não existiam rádios nos veículos. Aqueles que possuíam essa particularidade, os aparelhos emitiam mais chiado e ruídos do que verdadeiros sons.
Seguindo-se, a um sorriso aberto, afirmava:
– Sou do tempo em que nos Santos Populares soltavam-se balões e foguetório a estoirar no ar, sem tão pouco haver perigo de incêndio. Passado em que se podiam vender bombas de susto, mistura de areia, pólvora e outros artefactos, no Carnaval, que ao serem atiradas para o chão provocavam, somente, alguma fumaceira. Hoje só se permitem bombas atómicas e outras de maior calibre ou dimensão, que proliferam pelo mundo fora e que não são para distracção, mas para matar e destruir a humanidade. Lembro, ainda, as bombas de cheiro que deitadas nas salas de aula provocavam forte borburinho. – Fazendo gestos com as mãos. – Sou do tempo em que a televisão, frigoríficos, micro-ondas, telemóveis, etc… era um sonho. Sou da época do cinema mudo e, depois, dos filmes a preto e branco. A grande novidade foi a cor sépia com que vi a fita da série “Flash Gordon” e o “Planeta Marte” e a cor esverdeada com que também vi “Buck Rogers”, tudo no cinema antigo da minha cidade, na esplanada da Avenida Conde da Carreira, com as fitas a quebrarem-se invariavelmente, perante o protesto da plateia.
Levantava-se da cadeira onde estava sentado no recinto da entrada do seu prédio. Dava um pequeno pulo. Depois, continuava a conversa.
– Sou do tempo em que o Sporting Clube de Portugal era o melhor. Não havia violência no futebol ou em qualquer outro desporto. Os dirigentes respeitavam-se. Nas vitórias de campeonatos ou taças era permitido o acesso ao relvado, a fim de se confraternizar, mas tudo em ordem e sem quaisquer agressões. A bola era de couro e amarrada de cardaço com câmara de ar de pito. – Dando uma gargalhada – Sou do tempo do ar ventilado onde a poluição não existia, nem se falava, tão pouco, do ar condicionado. E a gente tinha, sem dúvida, mais saúde. Sou do tempo, ainda, do pirolito com bolinha de vidro. Começava a falar-se e a aparecer, timidamente, as pizzas e as lasanhas, formando-se filas para degustar esses, na altura, considerados pitéus, caídos, agora, na banalidade.
Com a voz nostálgica, prosseguia:
– Sou do tempo em que se disputava, ao fim da tarde, um pedaço de espaço público, para passear, para cima e para baixo, numa praceta que existia ao meio da Praça da República, sempre, na minha cidade. Tudo isso, aliado, ainda, aos feriados e fins- de-semana, passeando, também, na época da estiagem, no Jardim Público, durante a tarde e à noite, numa conversa amena entre amigos e conhecidos a absorver o suave aroma que o rio Lima exalava para a margem sem a marina ou edificação de restaurantes, bares nocturnos ou outros poluentes sonoros. – Acrescentava com um esboçar de mãos. – Sou do tempo em que as coisas se tornavam alegres, simples no trato, às vezes campesinhas, portanto cheias de pureza e romantizadas.
E também sou do tempo, que na limpeza pública da cidade ainda se viam carroças puxadas por animais de raça cavalar e na varredura dos arruamentos apareciam as vassouras de giestas ressequidas com os seus caules presos por arames a um pau que servia de pega. – Acrescentava – Foi uma época em que as comportas da memória continuam a reter esse passado, já longínquo, mas que veio a ser fortemente alterado numa marcha tão rápida. Ia por diante com a sua narração, após breve descanso, dando, sempre ênfase àquilo que citava.
– Sou do tempo em que não se pensava na existência de grandes superfícies comerciais, onde se compra, agora, praticamente tudo, além de outras funções pessoais, que vieram, genericamente, acabar com as lojas de bairro, autênticas relíquias de outrora, que vendiam o produto manipulado. Sou do tempo da comunicação através dos pombos-correios, do morse, dos telefones com fios, da estenografia, chegando, depois, o telex e muito mais tarde o fax, aliado à informática e ao telemóvel de grandes dimensões. Agora quase é invisível, ou com aspecto de elevado marketing aberto a funções deveras avançadas, na chamada última geração. – Com um sorriso interrogava-se. – Que mais virá, ainda? Sou do tempo, como não podia deixar de ser, da acção de transmitir e receber mensagens através de bandeiras, que era ensinado nas escolas. Sou do tempo em que a rapaziada, nas férias, principalmente na época de Verão, sentava-se na esplanada do café, situado no Jardim Público, numa afirmação de aparente importância a querer mostrar independência e a cultivar amizades, naquele lugar urbano e bem tratado, para a bebida de um café e copo de água, groselha ou mazagrã.
Para concluir a sua divagação dos tempos idos, rematava:
– Sou do tempo da matança do porco, na aldeia da minha mãe, que a vizinhança mais próxima ajudava em todas as suas fases, numa castiça tradição e onde a porta de casa não era fechada à chave. À noite, na véspera, à luz do candeeiro a petróleo ou petromax, porque não havia electricidade, dava-se início ao descasque das cebolas, que ficavam, após grosseiramente picadas, a repousar em grandes alguidares de barro vidrado, que os dizeres populares alcunhavam de “estonada”. No dia seguinte, em plena matança do porco e com partes dele adicionadas aos adequados temperos preparavam-se alguns apetitosos chouriços de cebola, que eram saboreados, para provar, meio chamuscados por um fogo trepidante, mas que produzisse bastante fumaceira, na lareira da casa e dependurados em paus, presos por fios, na chaminé.
Apareciam na ementa do segundo dia da matança, que culminava com um almoço de sarrabulho, pela tarde fora, a saborear o porco agora abatido, em variados menus, destacando-se o lombo assado com batatas novas e castanhas e o conservado do ano anterior, num apetecível cozido à portuguesa, em franca conversa e bem estar. Não faltava o saboroso vinho verde servido em canjirões de barro e as travessas de arroz doce com muita canela, composta em palavras alusivas ao acto. Além do leite creme, este queimado através de uma pequena pá de ferro aquecido em lume produzido por troncos de madeira.
Nota: Este conto, por vontade do autor,
não segue a regra do novo acordo ortográfico.
(Imagem: “Olhar Viana do Castelo”)