As mulheres da seca

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Noite cerrada, ainda com o “sol pela casa de Cristo”, como dizia a minha saudosa Mãe, já elas descalças, com pé ligeiro, indiferentes às inclemências do tempo, desciam os fragosos atalhos das Carrascas ou vinham de Milhões e da Chasqueira, pela estrada, para se juntarem perto do solar Alpuins, porque mais à frente, no Montinho, a elas se juntavam as de Vila Fria e Mazarefes. Depois, num tagarelar constante, por vezes entremeado de cantigas do folclore e até das orações que cantavam no coro da igreja, juntas seguiam pela estrada e por ínvios atalhos para encurtar percurso, a caminho do árduo trabalho na Seca do Bacalhau, no lugar do Cais Novo, em Darque.

Eram as “Mulheres da Seca”, como o povo lhes chamava. Aí chegadas, o som da voz rouca, com tons agressivos, do “senhor Paulino”, que era então a voz de comando daquele mundo de trabalho precário, duro e mal pago, que a Empresa de Pesca de Viana oferecia às jovens e senhoras das redondezas, chamando-as à realidade para a faina do dia. Na vasta área dos tabuleiros expositores da seca, seguia-se a distribuição por zonas. Depois, mãos ensalitradas e pés doridos pelo caminhar, agora enfiados em modestos socos ou alpercatas, com um cesto à cabeça carregado de bacalhau, era o constante vai e vem entre o armazém e o secadouro. Quando sol despertasse em cheio, todo o vasto espaço da secagem tinha que estar coberto com as folhas do peixe, que, depois de “curado”, seria para muitos, – que não para elas, – “o fiel amigo de cura amarela”, que tanta fama deu à e Empresa de Pesca de Viana!… A jornada de trabalho estava apenas a meio. Depois do frugal almoço, que cada uma levava de casa, havia tarefas secundárias a executar, até à hora em que o sol começasse a declinar no horizonte, lançando as suas chapadas de luz sobre o mar, imprimindo-lhe aguarelas dignas da paleta de um pintor.

Novamente à ordem do senhor Paulino ou de algum dos seus sequazes, os cestos voltavam às suas cabeças para fazer agora o inverso do trabalho da manhã, isto é, levar o bacalhau para o armazém; tarefas que no dia seguinte repetiam, durante cerca de um mês. Trinta dias, até que o “sol bendito” desse ao bacalhau espalmado a cor e o paladar que os portugueses tanto apreciam, trabalho hoje substituído, com desvantagem, pelas baterias de calor gerado nas estufas elétricas. Infelizmente, a Seca de Viana já só existe na memória daqueles que, como eu, tiveram a oportunidade de lidar com esses trabalhos e com quem o executava, uns e outras, que orientava, cujo polo centralizador era o senhor Paulino. 

Mais ainda: essas senhoras, hoje com o corpo marcado por artroses, gota e reumatismo, mas conformadas com a vida que levaram, porque são agora simpáticas avós, eram muitas vezes chamadas à descarga do bacalhau nos navios da frota pesqueira de Viana, sobretudo nos barcos de pesca à linha, o São Rui e o Santa Maria Manuela. Para esse trabalho, na véspera, o senhor Paulino, selecionava as que entendia terem mais agilidade e destreza, já que essa operação era por vezes arriscada, tendo em atenção o balanço que as águas da doca davam ao navio amarrado ao cais. Nesses dias, quando chegavam à Seca, em Darque, as seleccionadas subiam para a caixa aberta da camioneta de carga e eram transportadas para a Doca, em Viana. Aí, essas esforçadas trabalhadoras, com o cesto de bacalhau à cabeça, descalças com os pés impregnados de sal, através de uma prancha de madeira, subiam do convés do navio até borda da doca para lançar a carga do cesto na camioneta, onde outras mulheres dispunham o peixe em camadas, para, através da ponte metálica, ser transportado para a Seca e dar início à operação de secagem. Imagine-se o esforço que lhes era exigido durante um dia de trabalho: carregadas, a subir e a descer um piso irregular, com uma maresia gélida a bater no rosto, nos saturados pés e nas mãos entorpecidas pelo frio!…

Para além destas dificuldades, havia ainda o variável desnível entre o convés do navio e a borda do cais, porque estava sujeito à oscilação provocada com a subida e descida da maré, que se reflectiva nas águas da doca, exigindo uma constante correção da posição do corpo, no subir e descer da rampa.

Que estas simples e despretensiosas palavras sejam uma homenagem a essas “heroínas” ignoradas ou esquecidas. Que os seus filhos e netos e, por arrastamento, todas as pessoas de Vila de Punhe, não vejam nelas umas “coitadinhas”, mas sim mulheres honestas, sujeitas ao trabalho rude, mas honrado, que serviu para ajudar a sustentar a família com dignidade. 

Que mais dizer das “Mulheres da Seca” naturais de Vila de Punhe, coevas da minha infância e juventude? Só mais uma palavra. Por ironia do destino, ou vontade de Deus, pude mais tarde, na minha atividade profissional, conviver de perto com muitas delas, tendo a oportunidade de aquilatar o valor que têm, ou tiveram, na formação dos valores morais das suas famílias. Para as que já partiram para Deus, as minhas orações, para as que ainda vivem, que sejam felizes com filhos netos, tal como desejo ser com os meus.

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