As questões éticas nos cuidados de saúde

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Com este título, “As questões éticas nos cuidados de saúde”, recebi em tempos um texto enviado pelo Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas, solicitando a discussão do documento, a fim de que ele pudesse constituir um instrumento útil de reflexão. 

Na altura, li e reli o texto com toda a atenção. Reconheço e aprovo os valores fundamentais que constituem o seu núcleo, mas não me parece que ele tenha uma significativa repercussão na consciência de médicos e de outros agentes de saúde. Como parte da população pertencente aos mais diversos sectores profissionais e sociais, uma boa parte de nós, médicos e outro pessoal de saúde, não tem a formação exigida para exercer uma verdadeira Ética em Saúde. Uma grande falha no ensino da medicina, capaz de comprometer seriamente o ensino da vida. A ética nasce e desenvolve-se dentro de cada um de nós à medida que a vamos aprendendo, apreendendo e vivenciando. Por isso, não me parece fácil haver uma reflexão séria sobre a nobreza dos ideais médicos, de forma a poder entender-se que “O médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se, por esse facto, à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo com correção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir saúde, suavizar os sofrimentos e prolongar a vida, no pleno respeito pela dignidade do Ser Humano”. Isto não é um mandamento do código da estrada, nem uma alínea do articulado de qualquer lei. Este Artigo 26º do Código de Deontologia Médica implica, antes de tudo, que o médico e outros profissionais de saúde tenham bem estruturado na sua natureza e na sua formação um rigoroso respeito por eles próprios, e reconheçam a sua dignidade como pedra fundamental da vida e da profissão. De outra forma, todos os códigos são letra morta e só servem para enfeitar. Dito por outras palavras, todo o ser humano deveria ser global e estruturalmente bem formado, mas especialmente quando lhe é destinada a nobre e digna missão de lutar pela vida dos outros.  Uma boa parte da humanidade, ao invés de humanizar as leis, infelizmente vai-as subvertendo no dia a dia, ao tecer a corda cada vez mais forte com que enforca cada vez melhor os mais fracos. A este fenómeno podem não ser alheios os profissionais de saúde e a medicina, quer no que diz respeito à competência, quer no que diz respeito ao empenhamento, à verdade e à honestidade dos meios e processos inerentes a toda a sua vida clínica.

Considero e sempre considerei a ciência o verdadeiro caminho do conhecimento. Mas a ciência pode ser e é muitas vezes uma eufemística boa fada da humanidade, criada para apoio dos fracos, passando rapidamente a suporte dos poderosos. Com todo o potencial que a envolve, é fácil atraiçoar os projetos humanitários e o seu histórico bom-senso, quando em vez de construtiva se torna fator degradante da vida humana. Mas o perigo não está na ciência. Está na perversão da ciência perante os apetites dos poderes. E também pode estar, infelizmente, na perversão da sua filha mais dileta, mais séria e mais virgem, a Ciência Médica. De nada servem palavras e comportamentos formais e enformados, inertes, nascidos da adaptação e do conformismo, despidos da inquietação, do revolver da inteligência, do poder do pensamento e do questionamento da consciência. Na minha maneira de ver, ser médico obriga a um especial dimensionamento da existência à escala da vida, da vida à escala da saúde, da saúde à escala da Justiça, da Justiça à escala do mundo. A visão universal da vida aponta para o núcleo ativo das interações multifactoriais da existência, o qual exige a presença de uma política humana que torne possível uma ciência humana, base indispensável do progresso e da justiça. Podem chamar utopia a tudo isto. Mas o remexer do que em nós existe de sério, o soprar do pó que cobre as nossas consciências e o desenraizar das nossas hipocrisias mostram-nos que, sem utopias, todo o ser humano se torna mais permeável à desumanização e à irracionalidade. E todos os que pensam e lutam sabem que “a utopia é a injúria ordinária que os medíocres atiram a todos os ideais”. 

Adão Cruz

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