Cantares Galegos / Fado Tropical

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Alguns dos poemas de Cantares Gallegos, esse maravilhoso livro de Rosalia de Castro (1ª edição em 1863), são um lamento pela sangria emigratória do mundo rural ocorrida em meados do século XIX. Vários desses poemas foram cantados, entre outros, por Adriano Correia de Oliveira, nos anos 60, na plangente Canção de Emigração, entoada em coro nas nossas manifestações contra a ditadura, denunciando a pobreza em debandada nessa época maioritariamente para França: “(…) Este parte/ aquele parte/ e todos, todos, se vão./ Galiza, ficas sem homens/ que possam colher teu pão.” 

O Minho rural dos anos 50/60, onde me criei, mantinha-se idêntico ao de meados do século XIX dos Cantares Gallegos, tendo desde essa data até meados do século XX partido daqui o maior fluxo emigratório de Portugal para o Brasil e Argentina e, desde meados do século XX, para França.

Desde cedo convivi de perto com facetas peculiares da emigração. Meu avô, de minha grata memória, era procurador de alguns conterrâneos da última leva de emigrantes para a Argentina e para o Brasil, até aos anos 40 do século XX, que pediam emprestado para a viagem, deixando uma courela de hipoteca. Desses tempos guardo diversa correspondência, com selos da Evita Perón e de Getúlio Vargas nos envelopes endereçados com caligrafia rudimentar que milagrosamente chegavam ao destino. O aluvião de gente que lá aportou, nos séculos XVIII e XIX, era maioritariamente de portugueses e galegos, constituindo a mais elevada herança genética do povo brasileiro. Uma viagem entre Vigo e o Rio de Janeiro demorava, nesse tempo, dois meses. Alguns, poucos, vinham à terra natal procurando mulher para casar e voltavam. Alguns outros, regressavam definitivamente, ricos, a falar brasileiro, de Cadillac e bigodinho gaúcho. Porém, nem a todos a Fortuna bafejou. O mito de enriquecer abanando a árvore-das-patacas, nascido dos magníficos palacetes construídos pelos que regressavam muito ricos ou até ostensivamente ricos, a quem chamaram “os de torna-viagem”, desvaneceu-se para o comum dos imigrados. Muitos deles prosseguiram lá uma vida tão pobre como a que aqui tinham, a viver em condições miseráveis e a morrer de tuberculose. A grande maioria lá ficou para sempre, reproduzindo a pobreza, nem sequer amealhando o suficiente para um regresso envergonhado que fosse.

Nas voltas que a vida dá, é agora Portugal que acolhe brasileiros que, do seu país em inquietante situação social, política e económica, aqui chegam em vagas, acalentados pelos sonhos legítimo de ganhar o pão em paz e segurança. Vêm também marginais, prostitutas, cartomantes, negacionistas e predicadores de cultos. Bem mais sorte têm estes emigrantes do que tinham os luso-galegos da Rosalia. Beneficiam, entre outras regalias, da proteção das leis laborais e do S.N.S. e ainda da nossa brandura perante a hostilidade que muitos deles criam. Os desencantados poderão pedir ajuda para regressar ao seu país, de onde partiram com espectativas que se viram frustradas. 

Quanto a nós, restam-nos as saudades do ouro e as profecias do Chico Buarque (descendente de judeus de Barcelos emigrados no séc. XVII para a nossa antiga colónia) cantadas no seu Fado Tropical. 

Mário Vale Lima

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