Capela de “S. Crispim e S. Crispiniano”, Patronos dos Sapateiros e Correeiros

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Francisco Carneiro Fernandes

No “A Aurora do Lima” de 22-XII-2022, publicou-se uma síntese do período áureo do porto de Viana relacionado com o “ciclo do açúcar brasileiro” (séc. XVI – c. 1660); consequente desenvolvimento da “burguesia” e de ofícios mecânicos relacionados com a construção e reparação naval, comércio marítimo de cabotagem e longo curso, construção civil, transportes de tração animal e artigos de vestuário e calçado (trabalhadores na área têxtil do linho, cânhamo, seda, lã, e na curtimenta e transformação de peles). Conjuntura favorável a agrupamentos de mesteres pertencentes a um ofício ou família de ofícios, sujeitos a um regimento (estatutos, com os mesmos deveres e direitos dos “irmãos”, em termos de entreajuda material e psicológica). 

Com efeito, várias confrarias tiveram assento na Foz do Lima. Umas, poderosas, “tomaram” para si espaços amplos na Igreja Matriz de Viana: “Senhor Jesus dos Mareantes”, “Santíssimo Sacramento”, “Espírito Santo, S. Pedro e S. Paulo” vulgo “dos Clérigos”. Outras, de ofícios civis com respetivo Orago, edificaram um templo de raiz, capela para servir de sede ao Santo Padroeiro. Assim partilhámos uma resenha histórica da Capela de Santo Homem Bom, cuja construção, no primeiro quartel do século XVII, se deveu à “Confraria dos Alfaiates, Mercadores, Sirgueiros e Tosadores”. Posteriormente, sob a invocação de Nossa Senhora das Candeias, mas preservando iconografia do antigo Padroeiro: Santo Homobono Tucenghi, de Cremona (N. 1117; F. 13-XI-1197), comerciante de tecidos, casado e sem filhos, que aplicava os seus proventos para ajudar os mais carenciados, e ainda hoje Patrono daquela histórica cidade do Norte de Itália, cuja festividade se comemora no dia da sua morte.

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Igualmente a “Confraria dos Sapateiros” tem a sua história em Viana da Foz do Lima. Também congregava Surradores, Curtidores e Correeiros, e tinham, em comum, uma casa própria na Rua do Gontim, para tratamento de peles. Fundada em 1620, esteve de início nos “arrabaldes da Vila” (Capela do Recolhimento de S. Tiago), transferindo-se em 1628 para uma capelinha privativa, dedicada a São Crispim e São Crispiniano, junto da “Porta do Postigo”, a entrada principal de Viana no setor Sul da respetiva muralha. Segundo o historiador Luiz de Figueiredo da Guerra (Viana do Castelo, 1-III-1853 – 1931), “a porta principal e postigo ao Sul era da invocação de S. Filippe e de S. Chrispim. A torre foi demolida em 1698; o arco em 1882.” Desde 1698, a Confraria dos Sapateiros instalou-se definitivamente na Capela da Rua da Bandeira. 

No estabelecimento fronteiro ao rio, antigo depósito de mercearia, mais tarde “Transportes Mário Freixo” na esquina poente da atual Rua de A Aurora do Lima, conservou-se, até à década de 1980, uma imagem antiga de São Crispim, de pedra policromada, exposta num nicho de parede. Desconhecemos o seu destino, com as obras de remodelação do espaço para agência bancária do Banif (entretanto já desativada).

A antiga Capela de S. Crispim e S. Crispiniano da Rua da Bandeira apresenta, à entrada, a data de 1696, inscrita no arco suportado por duas pilastras, em cantaria. 

Como na Capela de Nossa Senhora das Candeias, antiga de Santo Homem Bom, Patrono dos Alfaiates e Sirgueiros, também no templo hoje incrustado no casario da Rua da Bandeira entre a Praça da República e a antiga “Rua das Correias”, atual Rua Major Xavier da Costa – o culto de Nossa Senhora – Capela de Nossa Senhora do Resgate – substituiu a invocação de S. Crispim e S. Crispiniano, Patronos da Confraria dos Sapateiros, Correeiros e profissões similares.

Capela com frontaria revestida a azulejos de “estampilha” da 2.ª metade do século XIX: padrão policromo (P-19-00102), formando reticulado geométrico do qual se destacam quadrados, cruzes e motivos em estrela. Trata-se de uma técnica semi-industrial da reprodução de padrões: pintura manual a trincha e/ou pincel nas aberturas ou recortes do papel encerado, “a estampilha”, que se colocava na superfície dos azulejos.

No INTERIOR, obra de talha em estilo Neoclássico. Dois retábulos colaterais ao arco-cruzeiro. No lado do Evangelho, o mais honroso, as imagens de Nossa Senhora de Fátima e Santa Rita de Cássia. No lado da Epístola colocaram as imagens dos Patronos da Confraria dos Sapateiros e Correeiros que construiu a Capela nos finais do século XVII: S. Crispim e S. Crispiniano, irmãos de origem romana e “mártires franceses”, representados sempre a par: esculturas de madeira policromada, de vincado talhe, com a palma do seu martírio no século III; na banqueta, São José com o Menino. Os “Santos Sapateiros” comemoravam-se no dia 25 de Outubro.

Retábulo-mor com trono desenvolvido em degraus, resplendor e representação do atual Orago na tribuna: expressiva PIETÁ, Nossa Senhora com seu Filho morto, resgatado da Cruz; relevado no sacrário, O Senhor Ressuscitado. Duas peanhas flanqueiam o retábulo, com as imagens de Santa Teresinha do Menino Jesus (Santa Teresa de Lisieux) e Santo António de Lisboa.

Segundo o investigador José Rosa de Araújo, a Confraria dos Sapateiros possuía um “ex-voto”, quadro pintado sobre madeira, curioso pelo desenho e legenda alusiva a milagre de Nossa Senhora da Vitória ao mestre (e respetiva tripulação) do hiate “Flor do Lima”, construído em Viana (1835) e registado na Capitania do porto vianês em 13-XI-1841.

Bibliografia:

ABREU, Alberto Antunes: O Culto de Nossa Senhora em Viana do Castelo, Instituto Católico, 2006 (Separata do tomo 12 da Revista Memória).

ARAÚJO, José Rosa de: Serão, reed. em 3 vol. de folhetins publicados em rodapé do “Notícias de Viana” desde 1966, Caminha, Camínia, 1982-1989; in Roteiro de Viana, 1970.

FERNANDES, Francisco José Carneiro: “Capelas de Viana”, Cadernos Vianenses, tomo 6, Dezembro 1981; Viana Monumental e Artística, GDCT ENVC, 1.º e 2ª ed. 1990; Azulejo – Roteiro no Concelho de Viana do Castelo, Câmara Municipal de Viana do Castelo, Junho 2017; Talha – Roteiro no Concelho de Viana do Castelo, Câmara Municipal de Viana do Castelo, Janeiro 2019.

MOREIRA, Manuel António Fernandes: O Porto de Viana do Castelo na Época dos Descobrimentos, Viana do Castelo, 1984; Os Mercadores de Viana e o Comércio do Açúcar Brasileiro no Século XVII, Câmara Municipal de Viana do Castelo, 1990.

N.R. O autor não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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