Capela do Recolhimento de S. Tiago

Francisco Carneiro Fernandes
Francisco Carneiro Fernandes

Situada na freguesia de Monserrate, quase defronte da antiga “Casa do Mirante” (“Colégio do Minho” desde 1942). Frontaria lateral, com porta de vão retangular encimada por frontão quebrado em volutas, donde emerge, ao centro, um nicho com escultura barroca, de granito lavrado, figurando o Santo Patrono.

O “Eremitério de Santiago” fazia parte do património da Câmara. Em 1557, Maria da Rocha, de família nobre de Viana, que sempre tivera grande devoção pelos doentes, soldados e pessoas pobres, pediu licença à Edilidade para entrar na ermida e aí residir em vida. O Município anuiu ao pedido. A criação do Recolhimento de Santiago remontará àquela passagem. (Vd. Bibl.: MOREIRA)

Após vicissitudes várias, viria a ser amparado pela Santa Casa da Misericórdia de Viana, cuja Mesa, em sessão de 29-VI-1663, acordou em erigir um Recolhimento regular, «com o número de dez recolhidas nobres desta vila, e que se desse a cada uma 80 reis por semana.» P.e Carvalho da COSTA cita-o, na sua “Corografia”, vol. I, p. 170 (2.a ed.): «[…] O Recolhimento de mulheres nobres, da invocação de Santiago, que vivem de suas tenças, como se forão professas, com grande reformação […]» (nos primórdios do séc. XVIII).

A nova vida e os estatutos não impediram uma outra interrupção. Valeu na circunstância a acção do arcebispo D. Rodrigo de Moura Teles, restabelecendo-lhe a “vida” aos 17-I-1721.

Este estabelecimento, que originariamente teve um fim louvável, degenerou, com o correr dos tempos, em asilo de mulheres a quem seus maridos obrigavam a nele entrar como castigo dos seus procedimentos desordenados, tornando-se, em certa medida, numa casa imoral. Ao pedido de extinção do Recolhimento, proposto em 1835 pelo primeiro Governador Civil de Viana ao Ministro do Reino, e apoiado em acusações graves, sobrepôs-se a acção inteligente do Governo que, não se deixando impressionar pelas imoralidades apontadas, não acedeu à entrega do edifício e cerca à Fazenda Nacional. Para pôr cobro a certos abusos, os serviços da Santa Casa da Misericórdia local foram reformados, nomeando-se uma comissão administrativa, por portaria de 16-III-1835. Dos meados do século XIX até à década de 1970, o secular “Recolhimento de S. Tiago” passou a recolher senhoras honestas pobres, que necessitavam de esmolas e, certamente, delas eram merecedoras. (Vd. Bibl.: CASTRO)

O velho edifício, que se estendia da Capela até ao gaveto da Rua de S. Tiago e Praça General Barbosa (vulgo “Jardim D. Fernando”), desapareceu na 2.ª metade do século XX. Por 1967, levantou-se uma dependência para as recolhidas, pequena, mas modelar, assim como um “bairro” de habitação de renda económica, da Santa Casa. Esta instituição empreendeu, na década de 1980, no espaço entre o “Jardim D. Fernando” e as ruas de S. Tiago e General Luís do Rego, a construção de um imóvel funcional: “Lar da Terceira Idade, de S. Tiago”, projecto do arquitecto Domingos Tavares.

*  *  *

Com a demolição do “velho Recolhimento”, desapareceu uma faceta singular no quotidiano vianense relativa ao fabrico e venda das “meias-luas de S. Tiago”. Sim, nos tempos da nossa infância (década de 1950 e inícios de 60), quando os afamados “pastéis de S. Tiago” – vulgo “meias-luas” – qual pastel freirático bem açucarado e aromático, de feitio em quarto de lua, recheio de gemas, com amêndoa pelada e ralada (depois substituído parcialmente por farinha de pau), “passado” ao comprador, na cabeceira da Capela, através da secular grade de ferro perfurado, com base de madeira; o badalo; a “roda de pau” onde se colocava a dinheiro, girava e trazia a encomenda apetecível…

Com efeito, este Recolhimento não fugiu à regra, ou costume, de receber, na “roda conventual”, os recém-nascidos recusados – “enjeitados” – valendo o cuidado das internadas. Só depois serviu a dita roda como meio de venda das “meias-luas”, angariando-se proventos para a subsistência das recolhidas. O fabrico esmerado saiu durante décadas das mãos de D. Maria da Hora de Sousa Pereira de Castro, a “Senhora Horinha”, que viveu longos anos nesta Casa, transmitindo a receita a uma sua parenta e colaboradora, e desta, também por laços de família, para D. Maria de Jesus Branco de Sousa, que fornecia a Confeitaria Natário e satisfazia encomendas particulares no seu domicílio, à “Portela de Cima”, e que o autor destas linhas, por motivo de vizinhança e amizade, teve o privilégio de comprovar, na década de 1970, a confecção escrupulosa do doce freirático. 

NOTA: O pastel frito, depois de bem enxugado da gordura (…), polvilha-se em frio com açúcar pilé, previamente aquecido ao forno, em tabuleiro. 

Sobre esta especialidade vianense de Doçaria Tradicional, com origem no “Real Mosteiro de Sant’Ana” (actual Congregação da Caridade), vd. Bibl.: FERNANDES; VIANA.

*  *  *

No INTERIOR da Capela, conservam-se algumas preciosidades. Na NAVE, lado da Epístola, altar com imagem de roca do Senhor dos Passos. Num retábulo Barroco setecentista, de talha policromada, venera-se, com devoção peculiar, Santa Rita de Cássia – Santa do perdão e da paz, dos humildes, dos casos desesperados, “a Santa dos impossíveis” (diz a devoção popular) –, falecida aos 22-V-1457, em Cássia, Itália, com festa litúrgica nesse dia. Em redor, viam-se fotografias e dedicatórias à Santa (décadas de 1980 e 90) e um ex-voto representado por miniatura de veleiro (meio casco), com legenda de 9-IV-1921, confeccionado por Generoso Alonso.

No lado do Evangelho, pintura sobre tábuas – Véu da Verónica – com fragmento antigo de talha. E um retábulo Barroco em “Estilo Nacional” – variante de edícula e “arquitrave” – de primorosa talha dourada, com tribuna onde se venera a imagem de vulto perfeito, estofada, de A Virgem com o Menino.

CAPELA-MOR presidida por duas curiosíssimas figuras de tocheiros, femininas, com indumentária de vistosa policromia. O retábulo-mor foi executado pelo mestre entalhador António Rodrigues Pereira, por obrigação de 29-V-1746. Belo exemplar de talha dourada em “Estilo Joanino” (2.ª fase do Barroco): sanefas a servir de dosséis (“guarda-pó”) no ático e nas edículas; conchas ou vieiras estilizadas; colunas de seis espiras em diagonal, com os sulcos adornados de grinaldas; pequenos atlantes nas mísulas; sacrário esférico. Na peanha do lado do Evangelho, imagem de madeira policromada figurando São Tiago, sentado e representado segundo a iconografia habitual: bordão, cabaça, livro, alforge a tiracolo e, na pala, relevada, as vieiras e as espadas.

_______________

Bibliografia:

CASTRO, Francisco Cyrne de: “Sobre o Recolhimento de Sant’Iago”, Roteiro de Viana, ano XVII, 1975.

COSTA, António Carvalho da: Corographia Portugueza e Descripçam Topografica, vol. I. Braga, 2.ª ed., 1868 (cópia integral do Tomo I da 1.ª ed., Lisboa, 1706).

FERNANDES, Francisco José Carneiro: “Capelas de Viana”, Cadernos Vianenses, tomo 6, Dezembro 1981; Viana Monumental e Artística, GDCT dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, 1.º e 2ª ed. 1990; Tesouros de Viana – Roteiro Monumental e Artístico, GDCT ENVC, 1999; “Confeitarias Brasileira e Vianense”, A Falar de Viana, ed. Vianafestas, 2006 (historial das “Meias-luas de S. Tiago” a págs. 215-216); Talha – Roteiro no Concelho de Viana do Castelo, Câmara Municipal de Viana do Castelo, Janeiro 2019.

MOREIRA, Manuel A. Fernandes: O Município e os Forais de Viana do Castelo, V. Castelo, 1986, a pp. 231-232 (segundo o “Livro dos Acórdãos Municipais de Viana”, 1557, pasta 3, fl. 20).

VIANA, António Manuel Couto: “Duas lambarices Vianesas” (Comunicação ao “III Congresso de Gastronomia do Alto Minho”), in Jornal O Vianense, nºs de 15-XI, 30-XI e 15-XII-1986, 15-II-1987.

N.R – O autor não segue o novo Acordo Ortográfico

Outras Opiniões

Os leitores são a força e a vida do nosso jornal Assine A Aurora do Lima

O contributo da A Aurora do Lima para a vida democrática e cívica da região reside na força da relação com os seus leitores.

Item adicionado ao carrinho.
0 itens - 0.00

Ainda não é assinante?

Ao tornar-se assinante está a fortalecer a imprensa regional, garantindo a sua
independência.