Caros fanáticos

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É do grande escritor israelita Amos Oz, o ensaio intitulado “Caros Fanáticos” (Fé, fanatismo e convivência no século XXI), publicado um ano antes da sua morte e, felizmente, já publicado em Portugal. Não pretendo glosar o conteúdo desse ensaio, mas, apenas, servir-me do seu tema fundamental e do testemunho pessoal do seu autor, para uma reflexão mais ampla que a todos nos responsabilize.

Amos Oz nasceu em Jerusalém, em 1939 e faleceu em 2018. Era de uma família judia que habitava em Odessa, na Ucrânia, donde teve de fugir para a Lituânia, em 1917, e dali para a Palestina, em 1933, que estava, então, sob mandato britânico. Amos estudou Literatura e Filosofia na Universidade Hebraica de Jerusalém entre 1960 e 1963. Desde jovem se aventurou pela sua vocação literária, produzindo uma obra vasta, internacionalmente reconhecida e largamente premiada, mesmo em Israel, onde era, certamente, o seu escritor mais célebre. Teve de participar na Guerra dos Seis Dias (junho de 1967) e na Guerra do Yom Kippur (outubro de 1973), com efeitos na sua reflexão sobre as causas do permanente conflito israelo-árabe, que o levou, com outros, à criação do movimento “Paz Agora”, pela convivência pacífica das várias comunidades do Médio Oriente, militando, corajosamente, por esse objetivo.

Retenho de Amos Oz algumas expressivas frases de um artigo seu publicado em 2004: «Uma onda de fanatismo religioso e nacionalista está crescendo por todo o mundo islâmico, das Filipinas a Gaza, Líbia e Argélia, do Afeganistão, Irão e Iraque até ao Líbano e o Sudão. Aqui, em Israel, temos sofrido os efeitos desta maré de fanatismo letal…. O facto de sermos vítimas do fundamentalismo árabe e muçulmano, frequentemente, deixa-nos cegos, de modo que tendemos a deixar passar em branco a ascensão do extremismo chauvinista e religioso, não apenas no mundo islâmico mas também em várias partes do mundo cristão e, de facto, também no judaico…Pode, facilmente, levar-nos a esquecer que, com ou sem fundamento islâmico, com ou sem terrorismo árabe, nada justifica a duradoura ocupação e repressão da população palestina por Israel. Não temos nenhum direito de negar aos palestinos seu direito natural à autodeterminação» (sublinhado meu e citações extraídas da “Folha de S. Paulo”, Brasil, de 13-09-2004)

Não falta em Israel, como não falta no mundo muçulmano, como não falta no mundo cristão, quem tenha consciência correta, sem preconceitos de aversão ou de ódio, dos direitos universalmente reconhecidos aos povos do Médio Oriente. No entanto, dessa região do mundo, uma efervescência bélica, de ódios acumulados, propagam-se, quer em manifestações brutais de terror, quer em posicionamentos mediáticos e populistas, segregadores (“de que lado estás?”) que transportam e manifestam as mesmas raizes fanáticas que nos tentam, porque estão em nós, sem nos apercebermos. Se há guerras, se há ódios sociais, sob coberturas várias, religiosas, culturais, históricas, económicas, etc. é porque a atitude fanática domina os espíritos humanos ao serviço das suas desmedidas ambições.

A palavra fanático, tem a sua origem na palavra latina “fanum”, que designava o lugar sagrado. O fanático é como um iluminado, fixo numa ideia ou numa atitude, sem capacidade nem vontade de se questionar, nem de aceitar a possibilidade de estar errado, de ver, avaliar e apreciar as ideias e as atitudes dos outros. O fanático, sem se dar conta, atribui caráter sagrado, absoluto, ao que pensa e ao que faz. Se o fanatismo é mais evidente na absolutização religiosa, quando se fixa em dogmas sem plausibilidade, é também evidente nas atitudes políticas, no dogmatismo pseudo-científico e nas atitudes de pertença a um grupo social, a um clube, a uma associação, a uma etnia, a uma nacionalidade. Nestas situações, as pessoas fecham-se nelas e nas suas ideias, sendo intolerantes para com situações e ideias diferentes. As consequências normais da atitude fanática são a xenofobia, o racismo, a segregação e a exclusão social, onde germinam as guerras.

Porque será que as crianças brincam às guerras? – “Porque os adultos / desde sempre fazem a guerra / tu fazes “pum” e ris; / o soldado dispara / e um outro homem / não ri mais. / É a guerra”, como dizia Bertolt Brecht. As crianças não brincam à paz. Os adultos não lhes dizem como se faz. Como poderá ser de outro modo se a nossa cultura é dominada pelos critérios da concorrência, da paixão pela competição, desde a economia à política, desde o desporto à religião e,finalmente, ao individualismo da competição pelo estatuto social. Na economia moderna, por exemplo, o dogma do “mercado” é uma verdadeira guerra, competição avassaladora, e alimento de guerras, pela via financeira e pelas indústrias de armamentos. 

Se não somos vigilantes sobre nós mesmos, o fanatismo e a guerra alimentam-se da nossa displicência ou da nossa indiferença, desejando a paz, mas não a fazendo. 

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