Carta ao Diretor

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A crítica do poder, até mesmo do judicial, é uma função democrática essencial. Em estudo orientado por António M. Hespanha (“Inquérito aos sentimentos de justiça num ambiente urbano”, Almedina, Janeiro de 2005), 53% dos lisboetas afirmaram que as instituições judiciárias não são independentes dos interesses políticos, económicos e financeiros.

O caso do Prédio Coutinho, que está na calha para ser demolido , é paradigmático.
Pode dizer-se o que se quiser sobre o Prédio Coutinho. Que é um mamarracho, que jamais devia ter sido licenciado, que “o prédio é um erro urbanístico claro!” (José Sócrates), que “é um abcesso urbano” (João Pedro Matos Fernandes), que “a sua demolição é fundamental num processo de requalificação da imagem e da estrutura da cidade” (Acta da reunião da Câmara de 02.07.2018). Enfim, pode dizer-se quase tudo e mais alguma coisa. Mas há algo que em boa fé não se pode dizer. Não se pode dizer que aquela parcela era necessária para lá se fazer um “mercado municipal e um espaço público”, como diz a Declaração de Utilidade Pública (2005) para a sua expropriação. Isso não é verdade. Isso é uma rotunda falsidade. A cidade dispunha então, como dispõe hoje, de outros locais, e mais apropriados, para receber um novo mercado municipal.

O Governo sabia das dificuldades que teria em expropriar o prédio se dissesse a verdade, i.e., se fundamentasse a expropriação do prédio na sua volumetria, por ser grande de mais e alto de mais. Na definição do Plano de Pormenor do Centro Histórico de Viana do Castelo (2002), por o prédio constituir “intrusão visual e discrepância volumétrica”, pois em nenhum país decente se expropriam pessoas das suas casas por causa da estética do prédio onde vivem. A estética jamais poderá ser colocada antes e acima das pessoas. Ciente dessas dificuldades, em ordem a conseguir a expropriação do prédio, o Governo engendrou uma falsa razão para justificar a expropriação. E isto, pasme-se, depois do Governo ter acabado (2003) com o bonito mercado municipal (Arq. João Andresen, 1962) que havia e que funcionava lindamente a menos de 100 metros do Prédio Coutinho.

Que o Governo minta, não surpreende ninguém. Que os nossos tribunais, incluindo o Constitucional, tenham sancionado uma expropriação fundamentada numa falsidade, dando como boa a razão invocada pelo Governo para justificar a expropriação do prédio, sem jamais a questionarem, se essa razão era verdadeira e genuína e não um mero pretexto para justificar a expropriação do prédio, e no processo tenham aceitado a destruição de cerca de 100 habitações onde viviam cerca de 300 pessoas, com o tremendo dano em termos humanos e sociais que a expropriação infligiu aos moradores do prédio, para no seu lugar se fazer um mercado que podia muito bem ser feito em vários outros locais da cidade, levanta naturalmente uma inquietante pergunta: são os tribunais em Portugal verdadeiramente independentes do poder político?
Ronald Silley, Canadá

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