| Corpo para que te quero | Desenho/Pintura/Casa do Marco – Arga de Baixo

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Abrir as portas de casa providencialmente, é característica do povo português.
Há casas, no nosso país, em que as portas se abrem, literalmente, para todos.
Não nos referimos a Fundações, Museus, ou Instituições que vinculam cultura e que ao longo dos séculos se foram democratizando, tornando acessível a experiência da Arte e da Ciência nas suas variantes de obra aberta.
Refiro-me ao lugar casa, na qualidade de habitáculo interno, intocável na sua natural respiração, nas suas sombras e nas suas alvoradas. Uma casa que sendo pertença de um, se multiplica em pertenças através das formas de Arte, proporcionado a artistas e “vizinhos” um caminho por vezes iniciático na descoberta de nós mesmos.
O pintor Mário Rocha continua a fazê-lo com a iniciativa “Arte na Leira” (Arga de Baixo. Casa do Marco – 14-7 a 19-8-2018).
Durante vinte anos a serra abriu-se à experiência que reconfigura o real.
Após o encerramento desta edição as portas mantêm-se abertas com duas exposições: “Coração para que te quero”, 35 desenhos sobre tela de Carlos da Torre e “Consciência para que te quero”, de Acácio Viegas, com 32 peças entre a escultura e a pintura.
Herdeiros de uma cultura em que a Tecnologia e a Arte se acasalam, distanciando-nos da pura “techné”, estes autores abrem no seu percurso, com esta exposição, uma dualidade de aparente oposição, tanto na forma como no conteúdo.
São duais na temática, pertença de um “corpo total”, unificador de emoção e razão, na figuração de uma fisiologia instigadora de estereótipos sociais em Carlos da Torre, como o apresentado no desenho (fig1) que levanta um coração na extremidade do órgão sexual masculino, alheado do real, suportado pela síntese de uma linha que marca a espacialidade da “composição” e a atemporalidade do “narrado”, evidenciando remota afinidade com H. Bosch.

Em Acácio Viegas o caminho é o da afinidade a Tao Te Ching (Lao Tse), a procura para além da matéria, na sua forma visível de um território de imagens que perseguem o momento seminal, obras reveladoras de afeição ao suprematismo russo, com uma gama cromática restrita a cores primárias em que as obras ao negro (fig2), induzem o “nigredo” do acordar na transformação biológica, a morte do ego ilusório.


Esta dualidade, subliminar, inscreve-se inevitavelmente num corpo, ambos sabem para o que não o querem; em Carlos da Torre questionando a fragilidade de valores sociais, em narrativas sarcásticas de elegante síntese formal e em Acácio Viegas numa pesquisa entre a forma e o espaço reflectindo a inteligência da sombra, na busca que é referida em Gilles Deleuze como: “esta ferida já existia antes de mim”.
O caminho abre-se e antecipa outros estados.
Corpo para que te quero (?), encontra nestas exposições dois níveis de resposta, num teatro de sombras que passa pela incursão no desenho digital, entre Arte e Tecnologia de Carlos da Torre, e a almejada incursão no campo expandido da consciência de que o exercício da Arte é sempre arena.
Na Casa do Marco, um “dizeur” lê o “Protopoema da Serra d’Arga” de António Pedro (Praia, Cabo Verde 1909 – Moledo 1966).
Cenografa-o marcando o espaço a pedras e maçãs. O Escaleira, pontua-o nas marcas astrolábicas do fim da tarde na Serra. Nada nesta exposição seria tão verdade sem a palavra do poeta atávico, escatológico e simultaneamente aurático, nos corpos de uma filigrana que, não enaltecendo, enaltecem o real.

Angela C.
Artista visual e professora universitária

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