Covid-19: que bicho nos mordeu?

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José Carlos Freitas

E, de repente, parece que acordámos dentro de um pesadelo. Tudo isto é mau de mais para ser verdade. Mas é verdade, e é verdadeiramente mau.

Hoje, temos – literalmente – um problema em mãos. Nestes dias em que a realidade supera a ficção, a imparável disseminação deste desprezível Covid-19 alterou de forma profunda o curso da civilização à escala global, trazendo-nos a promessa de um inevitável caos sem precedentes. Primeiro sanitário, depois económico e social. Nesta tragédia em que a angústia é geral, ninguém se fica a rir de ninguém. Excepto o Bolsonaro, claro, mas aí já entramos no campo da patologia mental. Logo, é irrelevante.

Não, desta vez nem tudo vai correr bem. Nem sempre, nem a todos. A galopante progressão de um vírus que tem na sua letal invisibilidade a sua mais traiçoeira arma, e que ataca sem olhar a credos, carteiras, idades ou etnias, permite antecipar uma elevadíssima taxa de incidência global de infectados, assim como uma decorrente e proporcionalmente elevada taxa de mortalidade. Será, lamentavelmente, o fim de muitos homens do Mundo, mas não será o fim do mundo dos Homens. Inexoravelmente, a humanidade resistirá, mérito da estoicidade e da capacidade de superação que nos permitiram chegar até aqui, vindos de tão longe. Recomeçaremos tudo de novo, se assim tiver que ser, reconstruindo pedra por pedra os alicerces civilizacionais que nos projectaram tão longe no tempo e tão alto na escala de evolução. Vamos vergar, é certo, mas não vamos partir…

As brutais e inimagináveis imagens de caos absoluto vindas de Itália ou Espanha, nações de 1º mundo europeu, mostram-nos o quão devastador este inimigo pode ser, e aconselham reservas e prudência. Não é só aos outros que acontecem as desgraças. Importa não esquecer que nós somos os outros dos “outros”, e que a evolução da situação por cá, sendo bem mais “benigna”, não deixa de ser dramática e potencialmente catastrófica. É verdade que temos conseguido “achatar”, com relativo sucesso, a famosa curva de progressão da infecção, mas não conseguimos prever com exactidão a evolução nos próximos dias e, sobretudo, nas próximas semanas. Se replicarmos o modelo de progressão de outros países, os números por cá dispararão, e aí, somente aí, conheceremos a verdadeira dimensão corrosiva deste microscópico Golias.

Parece, mas não estamos condenados! A sobrevivência dependerá de nós e do comportamento que soubermos manter. Ouçamos as autoridades, sigamos à risca os seus conselhos, e (ab)usemos da única arma de que dispomos: a prevenção. Mas só venceremos esta que é a maior crise à escala global desde a II Guerra Mundial, se formos capazes de anular e ultrapassar quaisquer divergências pessoais ou de classe, assumindo solidariamente um combate conjunto, assertivo e coordenado contra um mortífero inimigo comum. Nesta guerra universal, que a todos convoca e ninguém dispensa, todos dependemos directamente do comportamento e do sentido de elevação cívica do outro. Não há margem para irresponsabilidades. Mas se a cadeia de transmissão do vírus tem necessariamente que ser interrompida, os elos de solidariedade, generosidade e responsabilidade colectiva têm, em oposição, que se perceber reforçados e materialmente consequentes. Eu não posso falhar, para não comprometer o outro, e o outro não pode falhar, para não me comprometer a mim. E eu tenho que ajudar o outro, e o outro a mim, pois o barco em que navegamos é o mesmo, e um buraco no lado em que ele está sentado, apesar de lhe molhar os pés primeiro, afundar-me-á a mim também. No final, perderemos os dois.

Vivemos tempos de novos paradigmas e de inusitados paradoxos, em que se erguem muros à globalização para combater globalmente um problema transversal. Tempos que figurarão nos compêndios de história que as futuras gerações estudarão, aprendendo com os exemplos de superação que nos obrigamos a dar. Estamos a viver história na primeira pessoa. Saibamos cá ficar para a contarmos um dia.

Vivamos com esperança e sentido de responsabilidade comunitária um dia de cada vez, e outro, e mais outro, até contarmos dias suficientes para olharmos este pesadelo pelo retrovisor da memória. Só então perceberemos que bicho foi este que nos mordeu…

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