Dramas da Guerra colonial

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No dia 24 de setembro estive com os dois da foto, o Laranjeira à minha esquerda e o Ruca à minha direita, sentados à mesa. Na mesma mesa, além das respetivas esposas, o amigo António Dias e o Alves. Não nos víamos há cinquenta e três anos.

Ontem realizou-se o almoço de confraternização, no Grande Hotel Do Porto, ao fundo da Rua de Santa Catarina, da Companhia 1745, 67/69, da guerra da Guiné. Esta Companhia foi a última em que estive e que foi substituir a minha Companhia, a 1547, 66/68, em Bigene, no norte da Guiné. Quando faltavam pouco mais de dois meses para a minha Companhia acabar a comissão e vir embora, o capitão recebeu uma ordem superior para ser realizada uma perigosa emboscada noturna no corredor de Sambuiá, onde, eventualmente, iriam passar Amílcar Cabral e seus homens. A tão pouco tempo de vir embora, todo o pessoal, já fisicamente debilitado por quase dois anos de mato, foi psicologicamente ao fundo, compreensivelmente aterrorizado. Morrer agora, no fim? O comandante e eu éramos bastante amigos. Propus-lhe que enviasse um rádio para o Estado Maior dizendo que o médico considerava a Companhia inoperacional, com o que ele concordou. Recebeu como resposta a mesma ordem, dizendo exigir-se um último esforço.  O capitão voltou a responder, dizendo que o médico considerava muito difícil qualquer esforço. Tudo isto se passou durante uma madrugada inteira. Ao romper do dia, aterrou na pequena pista de Bigene um helicóptero trazendo a bordo o Comandante Supremo Arnaldo Shulz, o major-médico do serviço de saúde e um colega meu do hospital militar. Vinham fazer uma inspeção à Companhia. Soube mais tarde que me valera a razão, de outra forma teria ido parar à pildra. A companhia foi dada como inoperacional e iria ser substituída pela 1745, com a qual, ou melhor com os poucos elementos que dela restam, eu almocei ontem, no Grande Hotel Do Porto. 

Numa tempestuosa noite, no minúsculo cais do Rio Cacheu, deu-se a rendição das Companhias. A minha embarcaria rumo a Bissau, após o desembarque da 1745, comandada pelo arquiteto miliciano, Torre do Vale. Na altura da troca, este novo comandante recebeu um rádio dizendo que embarcava toda a Companhia menos o médico. Não é fácil descrever, quer da minha parte quer da parte dos soldados e oficiais, a onda de emoção, tão torrencial como a chuva. Com lágrimas de raiva, recusei-me a ficar. O capitão Torre do Vale, mais tarde um grande amigo, infelizmente já falecido, muito amavelmente fez-me ver que era uma ordem superior à qual não podia desobedecer e que seria obrigado a prender-me, se eu insistisse. Uma mesquinha e inesquecível vingança do Estado Maior, pelo meu atrevimento! 

Estes almoços, como o de ontem e outros em que estive, sobretudo da minha Companhia, não são almoços que possam assemelhar-se a outros quaisquer. Não sei dizer o que sentimos. Trata-se de um sentimento muito específico, um sentimento difícil de definir, um sentimento de tristeza e alegria, um sentimento muito enraizado de unidade, de irmandade, de cumplicidade que está para além do natural sentimento da amizade. De saudade não será, mas é um sentimento que arranca cá do fundo uma espécie de estranha nostalgia, um rebuscar no fundo do tempo o sentido do sangue que nos corria nas veias, a memória de todos os medos e fraquezas, uma sensação de perda profunda que até hoje aceitámos como vitória e que nos trouxe a um futuro do qual nunca saberemos o valor. Sabemos apenas que sem essa perda e essa vitória, sejamos nós quem formos, nunca seríamos quem somos. 

Mantive-me nesta nova Companhia os quase três meses em que, por direito, devia estar em Bissau, descansadamente, a beber umas cervejas. Quando vim embora, o último abraço, já sentado na avioneta, foi-me dado, de forma bem apertada, pelo meu caro Ruca. Pouco tempo depois de chegar a Portugal, soube por um dos muitos amigos nativos que lá deixei, que o “alfero” Ruca tinha perdido uma perna.

Ontem, felizmente, reconheci que o tal abraço não fora o último, pois ao fim de cinquenta e três anos, o que não faltou neste almoço foram abraços. Ao fim da tarde, não me despedi sem perguntar ao meu caro Ruca: olha lá, Ruca, tu que eras um rapazinho de vinte e poucos anos, por acaso muito bonito, com um prometedor séquito de namoradas, como é que lidaste no teu futuro com as mulheres? O Ruca respondeu, sorridente: olha, meu caro Adão, tinha uma prótese e as próteses, na altura eram tecnicamente pouco evoluídas. Eu via-me à rasca para camuflar o melhor que podia, até ao terrível momento de dizer à namorada que só tinha uma perna.

 

Adão Cruz

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