Efeméride de uma foto

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Na foto que foi capa da revista Seara Nova de Maio de 1973, apareço lá enfileirado numa imensa marcha que, numa dominical manhã de sol, em Aveiro, seguia pela Av. Lourenço Peixinho, nesse tempo ladeada de palmeiras e glicínias, desobedecendo à proibição da romagem ao cemitério local onde se pretendia homenagear Mário Sacramento, figura maior da oposição à ditadura. Era o 3º Congresso da Oposição Democrática, realizado em Abril de 1973. As fardas cinzentas da PSP, os inconfundíveis Pides, a GNR ainda de espingardas Mauser, os capacetes de ferro da Polícia de Choque e respectivos cães, davam à cidade um ambiente intimidatório e dissuasor daquele que seria o evento premonitório da derrocada do regime. Na dita foto vê-se ao meu lado um cavalheiro alto, de elegante fato e sapatos de polimento que, vim a saber, era o Prof. Lindley Cintra, insigne catedrático da Universidade de Lisboa. O fotógrafo disparou momentos antes da valente carga policial que fez dispersar os manifestantes que seguiam naquela avenida. Na debandada em que o tal cavalheiro alto continuou a par comigo, em fuga acelerada apesar dos sapatos de polimento, ia espreitando por cima do ombro, até que ouvi atrás de nós uma voz a ordenar «dispara, pá!…dispara, porra!». Creio que, eu ou ele, escapamos a um tiro pelas costas, talvez graças à paralisia da mão de um pide estagiário a quem a consciência ou o nervosismo bloqueou no instante de puxar o gatilho, permitindo-nos esconder no primeiro vão a jeito. Balanço final: trinta feridos ligeiros, pouco estrago para tamanho aparato de tão afamadas “forças da ordem”. De véspera já as polícias estavam acirradas: junto à bela estação da CP, um numeroso grupo de jovens manifestavam-se contra a guerra colonial entoando a balada do Adriano “Menina dos olhos tristes/o que tanto a faz chorar/ O soldadinho não volta/ do outro lado do mar” e dentro do Teatro Avenida, com os 1.400 lugares sentados e à pinha com gente de pé, acompanhava-se, em apoteose, o Zeca Afonso cantando “Trás outro amigo também”. Passados dias, o Zeca era detido e levado para a prisão de Caxias.

 Relendo-as, há nas Conclusões do 3.º Congresso demasiadas semelhanças ao Portugal de hoje: “(…) A sociedade portuguesa caracteriza-se por uma extrema e duríssima dominação de classe. É o domínio dos banqueiros, dos capitães  da indústria (…), dos grandes da especulação, da alta burocracia (…). Vive-se uma dominação de tal modo deprimente que parte considerável da população activa retirou para o estrangeiro (…)”.

Comovem-me estas fotos do mundo há 50 anos! A “barba à Fidel Castro”, o “cabelo à Beatle” e aquele casaco de padrão escocês que dei a um vizinho, Isaías de seu nome, calaceiro contumaz e profeta do Rendimento Mínimo. Nelas reconheço vários protagonistas daquela silenciosa marcha rumo à campa de Mário Sacramento sob o ideário deixado na sua Carta-Testamento: “(…) instaurem uma sociedade humana! Promovam o socialismo (…)”. Alguns, a seu tempo, venderam a alma ao diabo: uns, bem pagos, outros por um prato de lentilhas. Outros foi-os levando a morte, poupando-os, da pior forma, ao desabar do mundo que sonhavam e pelo qual lutaram. Restaram uns poucos – seres de uma espécie em vias de extinção – que continuaram a pugnar pela “(…) reconstrução do mundo/ fiel à perfeição do universo (…)”, com a mesma fé que os movia naquela avenida de palmeiras e glicínias numa manhã de sol de Abril.

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N.R. – O autor escreve ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.

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