Em tempos de luta pela Saúde

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A dor esfarrapa o homem, lá dizia um velho professor meu. Por isso, o combate à dor e ao sofrimento tem de ser olhado como prioridade nacional. A crueldade inerente à divisão dos doentes em ricos e pobres, decorrente do ataque feroz ao SNS, é digna de um conceito arcaico-fascista.

A não ser os que padecem, ninguém imagina o que é ter um cancro e andar um ano a mijar sangue, sentindo que cada gota de urina é um centímetro de arame farpado a sair pela uretra, mil gotas de suor a escorrer a dor por todo o corpo. A não ser os que padecem, ninguém imagina o que é saber-se comido por dentro, por um cancro que há um ano teria sido operável. A não ser os que precisam, ninguém sabe o que é esperar um dia ou dois no corredor de um hospital para ser atendido, por vezes enviado para casa, ter de recorrer a um hospital privado e pagar milhares de euros por uma operação malsucedida. Ninguém imagina o que é a falta de ar de um coração entupido, pulmões encharcados, e a dor de cair numa clínica de vão de escada ou a felicidade de ser recebido num dos locais onde há meios, competência e humanidade. Só a abnegação de muitos médicos, enfermeiros e outro pessoal, que os há, permite ao Estado aguentar a pouca saúde que temos e lavar a cara. A saúde não tem preço, lá diz o ditado. Mas se o tiver, este preço não é de medir pelo preço do linguado, do descapotável ou da casa de praia. Este preço é o preço do alívio da dor, do sofrimento, do arreganhar de dentes que o Estado, como defensor da dignidade humana, deve pôr acima de todas as negociatas. Se a saúde não fosse comprável, sob a forma de dinheiro ou influências, todos os responsáveis, governantes ou desgovernantes, criariam prioritariamente leis e sistemas que os defendessem das insuficiências e das fraudes. São estas leis e sistemas defensivos que é necessário criar, partindo do princípio de que é um povo inteiro que precisa de ajuda e alívio, e não apenas os que, com um nome ou um cartão de crédito, compram médicos e hospitais.

Também o valor moral e ético da profissão médica não se restringe ao valor ético da saúde, ele atinge e ultrapassa o valor moral da própria vida. Mas a convulsão de mundos e princípios mina os próprios médicos, que acabam por assumir, por vezes, uma cultura de conformismo e indiferença que alimenta a desistência. 

O nosso universo não tem começo nem meio nem fim. É um mundo complexo, com uma coreografia difícil de captar. Da nossa própria contingência tem de nascer a força da criatividade e do entendimento. Captar essa força, entender a educação, a saúde, a justiça e a paz, como a real riqueza da humanidade, constitui o verdadeiro atributo de um verdadeiro governo.

A edificação de uma política social e de saúde não se pode fazer com transitoriedades ministeriais e cosméticas mistificadoras, mas com sabedoria e real interesse humanitário, melhorando em todos os campos a qualidade de vida, eliminando prioritariamente o sofrimento, estabelecendo rigorosas salvaguardas que protejam as pessoas de uma produção avassaladora e de um consumo sociopático, geradores de desigualdades cruéis que inundam a terra de desvalidos, humilhados e ofendidos.

Adão Cruz

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