Caro Trabulo,
Continuo convencido de que te esculpiste a ti-próprio com traços de uma rude docilidade revestidos de um encanto inexplicável, pelo qual a gravidade da primeira palavra se desfazia em ondas de ternura. Nunca tivemos uma conversa banal, pois, mesmo que o motivo do encontro fosse vulgar, conta corrente, subitamente seguíamos em comunhão artística guiados pela tua delicada erudição, sempre contida, sempre hesitante, e por tudo isto despida de qualquer laivo de petulância, até lugares do imaginário onde, por vezes, o último gesto estético era só a amizade.
Numa manhã de Inverno, de 2019, guiaste-me numa longa via-sacra pelo percurso labiríntico da tua “Representação da Dor”. Sem pressa, parávamos em cada estação, contemplando a profundidade esboçada na vertigem de cada traço que insuflava as nossas palavras de uma comoção somente segura pelas frágeis amarras de uma certa masculinidade, que nos fazia seguir para a estação seguinte, até ao quadro final, mesmo em frente às escadas, que seria o apoteótico fim da tua Paixão, não fora lembrares-me: isto não está acabado.
Tantas e tão longas conversas foram precisas para fazermos brotar do silêncio da capa do meu livro de contos, O outro lado da rua, aquele rosto humano no centro de uma folha de gingko, precisamente no meio de uma rua, entre um e o outro lado da rua. Trocámos elogios ao traço e à palavra, louvando a cumplicidade que, talvez por contágio, renasceriam numa nova empresa.
Não fora o meu ateísmo, teria de acusar Deus pelo crime de lesa-arte decorrente do súbito impedimento de continuares a criar. Ora, fazendo apenas fé na transcendência criativa, eu e tu sabemos que ainda temos em mãos uma obra sobre Ruas do Porto, de que ambos tanto gostamos, do Porto, das ruas e de conversar sobre este melífluo encontro entre a poesia e a pintura, pelo que tenho de te lembrar: isto não está acabado.
Caro Trabulo, não temas qualquer atraso, pois sabes que eu espero, os dois sabemos que a arte vive neste e noutro tempo. Até lá lembro aquele raro e nobilíssimo prazer que nas últimas horas me tem visitado com mais assiduidade: todos os nossos encontros aconteceram sempre naquilo que o Borges chama eternidade do instante.
Até breve,
Pedro Pereira