A minha mãe tem 101 anos de idade e reside num lar. Foi uma resolução familiar após ter ficado acamada, vítima do vírus que nos tem afetado desde 2020. Não foi uma decisão fácil, mas o aumento da esperança de vida por vezes entra em contraditório com a situação irredutível da vida em contexto sociofamiliar. Não foi sequência de um desejo manifestado voluntariamente. Aparentemente, ela nem sabe onde na realidade está, apesar do seu olhar sábio suspeitar que a traímos. A traição do afeto firmado nas ausências no cumprimento dos regulamentos que gerem estas instituições, mas cuja lógica ela não compreende e está ilibada de aceitar quando a deixamos com um beijo e um até amanhã. É como em casa, mas não é como em casa. Não é o Jorge nem a Guida que a atendem num apelo noturno numa noite de insónia ou lucubração por dor ou pesadelo. É a Dona Isabel* ou a Dona Luísa* ou outro vigilante que esteja de serviço na escala da noite.
A expressão «Residência Sénior» não é um eufemismo. Os «residentes» que estejam em plena vitalidade possuem um tratamento de hospedaria com direito a passeios acompanhados ou não, a visitas da família, além de assistência médica e de enfermagem. Tudo está previsto no ato de pagamento. Mas estas prorrogativas não são apanágio de todos os lares. Infelizmente as televisões vêm revelando com regularidade notícias de abandono e maus tratos a idosos, normalmente com algum género de demência, incluindo estabelecimentos alegadamente insuspeitos. O principal fator deste comportamento desumano não é só da responsabilidade exclusivo do caráter torpe de funcionários e das tutelas. Significa ausência. É evidente que estes desequilíbrios emocionais podem acontecer e isso também é fato, no próprio gineceu familiar e, pior do que isso, em total silêncio e mutismo.
Em algumas culturas do passado, os velhos eram considerados imprestáveis e, assim, levados e deixados no cimo dos montes para serem devorados por predadores. Hoje, por hedonismo ou egotismo, os montes foram substituídos pelos lares ou instituições subsidiadas pelo Estado e os abutres por quem assume tal atitude, quando surge a nota da morte do ente que foi deixado ao abandono. Em muitos casos são as próprias instituições que os enterram. Sei que estas palavras são duras, mas são a denuncia da verdade.
Esta é a segunda consoada de Natal que a minha mãe irá passar sem a presença da família. Infelizmente não pode sair do internamento. Passá-la-á com os assistentes escalados que também ficarão privados do convívio dos seus. É um processo inexorável do percurso da vida, irredutível, extremamente doloroso para si e para nós – uns (que alguns já partiram), ajuntados, outros reunidos nos seus próprios núcleos. Porém não deixaremos de nos associar nas lembranças de infância, das rabanadas de vinho que ninguém mais soube fazer como ela, do seu arroz-doce e dos seus saborosos sonhos, que hão de evolar quando cairmos no sono diluente.
Então, Feliz Natal, um beijo e até amanhã!
Jorge Leitão