Um ancião da minha idade teve que sair da sua casa para ocupar um quarto pequeno, na moradia do filho casado também pai de filhos. As mãos do ancião, a sua visão turva e os seus passos titubeantes obrigaram-no mesmo a mudar de lar. Bem de ver que já se não bastava a si próprio. Teve mesmo que mudar. E tendo sido tudo normal na mudança, nas horas da refeição as mãos trémulas e a visão fraca, muitas vezes, aborreciam a nora e, por arrasto, também o filho; o líquido do copo derramava-se sobre a toalha, as ervilhas caíam ao chão e a colher seguia o mesmo caminho. Esta situação dava lugar a reparos frequentes por parte do filho e da nora que, resultando sempre infrutíferos, levou o casal a colocar uma pequena mesa num cantinho da cozinha onde o avô passou a comer sozinho numa tigela de madeira para não partir mais louça. Pensaram, decidiram, fizeram e ponto final.
Mas o neto mais velho olhava para o velhote desdentado e reparava nas lágrimas dos seus olhos quando as admoestações gritadas lhe eram dirigidas. E, quando o talher deslizava das suas mãos, então o menino ouvia o raspanete em silêncio, mas ficava muito contente porque não era só ele a ser censurado quando o seu comportamento também merecia reparos. E como o pai era marceneiro, também ele se entretinha por vezes não só a ver o pai trabalhar mas a bulir no formão, no martelo, no guilherme, na plaina e na serra. O pai perguntava ao filho o que estava a fazer e, conforme as circunstâncias, corrigia ou aplaudia com um sorriso. E, mais uma vez e naquele dia, perguntou:–Que estás a fazer, meu filho?
–Estou a fazer duas tigelas para vocês comerem quando eu crescer.
E com tanta inocência o disse que nem sequer tirou os olhos do seu trabalho. Mas o pai parou mesmo de trabalhar; apreensivo e dorido, falou com a esposa e decidiram reconduzir o velhinho à mesa familiar. Tudo se normalizou e ainda bem. E, por tão clara lição, o marido e a esposa já nada diziam ao velhinho trengo quando o leite se derramava ou a toalha da mesa apanhava pingos. E ponto final.
Caro leitor: eu, que durante sessenta e três anos tive a dita de falar ao povo, e sempre tive povo a escutar-me, nunca pensei que era mesmo eu que tinha que pôr em prática esta mensagem. Tenho na minha mesa uma decrépita de noventa e três anos que se comporta como decrépita nonagenária. E, então, quando tosse ou vomita olho para ela como sendo Jesus Cristo a pedir compreensão, calma e calor do coração. E quando, de noite, ninguém acorda e eu estou acordado, sou eu mesmo que a acompanho ao quarto de banho. Gostava de te dizer que não é por medo do que a mim possa vir a acontecer brevemente; nem tal coisa me passa pela cabeça; faço assim por um verdadeiro gesto de humanidade e caridade cristã.
E, a pensar nisto para publicar, ocorreu-me a frase que, à lareira, muitas vezes escutei ao meu pai, nas noites longas de inverno:
— «Filho és, pai serás; como fizeres, encontrarás». E apetece-me cantar
:- Hoie na terra nasce o amor: Deus para o homem Salvador.