Filho és, pai serás…

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Manuel Quintas

Um ancião da minha idade teve que sair da sua casa para ocupar um quarto pequeno, na moradia do filho casado também pai de filhos. As mãos do ancião, a sua visão turva e os seus passos titubeantes obrigaram-no mesmo a mudar de lar. Bem de ver que já se não bastava a si próprio. Teve mesmo que mudar. E tendo sido tudo normal na mudança, nas horas da refeição as mãos trémulas e a visão fraca, muitas vezes, aborreciam a nora e, por arrasto, também o filho; o líquido do copo derramava-se sobre a toalha, as ervilhas caíam ao chão e a colher seguia o mesmo caminho. Esta situação dava lugar a reparos frequentes por parte do filho e da nora que, resultando sempre infrutíferos, levou o casal a colocar uma pequena mesa num cantinho da cozinha onde o avô passou a comer sozinho numa tigela de madeira para não partir mais louça. Pensaram, decidiram, fizeram e ponto final.

Mas o neto mais velho olhava para o velhote desdentado e reparava nas lágrimas dos seus olhos quando as admoestações gritadas lhe eram dirigidas. E, quando o talher deslizava das suas mãos, então o menino ouvia o raspanete em silêncio, mas ficava muito contente porque não era só ele a ser censurado quando o seu comportamento também merecia reparos. E como o pai era marceneiro, também ele se entretinha por vezes não só a ver o pai trabalhar mas a bulir no formão, no martelo, no guilherme, na plaina e na serra. O pai perguntava ao filho o que estava a fazer e, conforme as circunstâncias, corrigia ou aplaudia com um sorriso. E, mais uma vez e naquele dia, perguntou:–Que estás a fazer, meu filho?

–Estou a fazer duas tigelas para vocês comerem quando eu crescer.

E com tanta inocência o disse que nem sequer tirou os olhos do seu trabalho. Mas o pai parou mesmo de trabalhar; apreensivo e dorido, falou com a esposa e decidiram reconduzir o velhinho à mesa familiar. Tudo se normalizou e ainda bem. E, por tão clara lição, o marido e a esposa já nada diziam ao velhinho trengo quando o leite se derramava ou a toalha da mesa apanhava pingos. E ponto final.

Caro leitor: eu, que durante sessenta e três anos tive a dita de falar ao povo, e sempre tive povo a escutar-me, nunca pensei que era mesmo eu que tinha que pôr em prática esta mensagem. Tenho na minha mesa uma decrépita de noventa e três anos que se comporta como decrépita nonagenária. E, então, quando tosse ou vomita olho para ela como sendo Jesus Cristo a pedir compreensão, calma e calor do coração. E quando, de noite, ninguém acorda e eu estou acordado, sou eu mesmo que a acompanho ao quarto de banho. Gostava de te dizer que não é por medo do que a mim possa vir a acontecer brevemente; nem tal coisa me passa pela cabeça; faço assim por um verdadeiro gesto de humanidade e caridade cristã.

E, a pensar nisto para publicar, ocorreu-me a frase que, à lareira, muitas vezes escutei ao meu pai, nas noites longas de inverno:

— «Filho és, pai serás; como fizeres, encontrarás». E apetece-me cantar

:- Hoie na terra nasce o amor: Deus para o homem Salvador.

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