Francisco, a “pequena luz bruxuleante”

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“Não sou crente, mas sou praticante”, confidenciava Salvador Dalí (conhecido farsante) quando questionado sobre temas da fé, rivalizando em farsa com os que por aí se dizem crentes deixando as igrejas às moscas. 

Segundo um inquérito do Centro de Estudos da Universidade Católica, a pedido da Conferência Episcopal Portuguesa, divulgado agora (in Público, 07.07.2023) “56% dos jovens portugueses com idades entre os 14 e os 30 anos declaram-se religiosos” e ainda  mais surpreendente: “34% dos que se dizem crentes, são praticantes; 46% dos crentes da faixa etária dos 14 aos 17 anos, rezam regularmente; 47% dos inquiridos vai à missa regularmente”.

Quem ouve os aglomerados de jovens nas paragens dos transportes escolares, ou nas borracheiras e praxes académicas, não pode acreditar nesses valores. O sonho (da maioria?) dos jovens de 14 aos 17 é serem futebolistas, youtubers, grandes empresários e influencers e esse não é um universo propenso a rezas ou missas. Que perguntas, feitas a um jovem “dos 14 anos aos 30”, servem para validar da sua crença? No filme Via Láctea, de Buñel, 2 peregrinos que se dirigem a Santiago, param para descansar e comer do farnel. A meio do repasto, um deles quebra o longo silêncio e também pergunta: «Pablo, tu crês mesmo em Deus?» Ao que Pablo, após breves segundos, responde: «Chega-me outra coxa de frango».

Em Abril de 1963 realizou-se em Lisboa o Grande Encontro da Juventude no estádio do Restelo sob o lema Os Novos Escolhem Deus. Uma excursão da Juventude Escolar Católica de Barcelos, rumou, fervorosa, a Lisboa, com os animadores cantando o respectivo hino: “Abram alas, terra em fora/por entre frémitos de luz/ Deus nos chama. É nossa a hora/ Alerta pela Cruz!/ Almas bravas de soldados/ Senhor já surgem de além/E há caminhos não andados/Que esperam por alguém (…)”. Coro: “Em nós, acendei em nós, ó Deus/Flamas de um nobre ideal/ Clarins! Vibrem clarins nos céus/por amor de Portugal! (…)”. 

Juntaram-se cerca de 50 mil jovens de todo o país no estádio do Restelo, um multitudinário encontro para essa época, comparando a escassez de meios dos jovens de então (levamos farnel e dormimos na camioneta) com a abastança da juventude actual. Chegados à capital, apercebemo-nos da presença, camuflada, de jovens subversivos que, à sorrelfa, se misturavam com os forasteiros, distribuindo propaganda de pendor antirreligioso e incitamento contestatário, sob o lema “Os Jovens Não Escolhem Deus”. Nesses tempos a Igreja era um instrumento do obscurantismo opressor da gente simples e ignorante e os predicadores deixavam os crentes a chorar em cada prédica, ameaçados pelas chamas do inferno: “não ofender a Deus, a quem chamavam “o Altíssimo” por habitar lá nos Céus ou “o Todo-Poderoso”, detentor dos trovões, terramotos e vulcões.

Grande número de jovens contemporâneos do Grande Encontro, rompeu, nos anos imediatos, com essa Igreja bafienta, representativa de um Deus imaginado velho, corpulento, de ceroulas e irrascível, e aderiram facilmente aos movimentos que, clandestinamente, germinavam nas universidades e meios operários de então, pregando o advento de um mundo novo nascido da Revolução. Esse mundo não passou de um sonho e tornou-se uma realidade saturada de infâmias e horrores.

Hoje, o Papa Francisco representa essa “pequena luz bruxuleante/aqui no meio de nós e a multidão em volta/brilhando incerta, mas brilhando (…)”, do poema de Jorge de Sena. Será no seio da multidão das Jornadas que se encontra o fermento de um mundo melhor? Evoluirá a Igreja de modo a religar o coração dos jovens a um Deus humano e luminoso, “que goste de dançar” (na expressão de Nietzsche), do lado dos perseguidos e humilhados, que não se sente à mesa com cristãos desonestos? É a dúvida que paira sobre outra multidão (de crentes, descrentes e cépticos).

Mário Vale Lima

O autor segue o anterior acordo ortográfico

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