As obras dos grandes escritores são muitas vezes simplificadas em categorias apressadas. Mesmo que tenham cultivado vários géneros, a percepção pública irá fixar-se num rótulo empobrecedor. Passam a ser vistos de modo disjuntivo: ou ensaístas ou dramaturgos, ou poetas ou romancistas. Vem isto a propósito de Guerra Junqueiro (GJ). Corre a seu respeito a palavra “poeta”, palavra que, na enormidade do seu significado, não deixa ver muitas actividades a que se dedicou. Sob o seu manto, por exemplo, desaparecem os temas filosóficos que lhe interessavam, e é hoje difícil associar o escritor ao pensamento filosófico português. Até os estudiosos contribuem involuntariamente para o desconhecimento de assuntos que foram importantes para ele, porque, ao se limitarem à procura de documentos e dados biográficos, acabam por dedicar pouca atenção à interpretação da obra. Há muito caminho ainda a fazer para se compreender quais foram os temas filosóficos que interessaram a GJ e, em complemento, qual é o sentido filosófico do legado que nos deixou.
(i.)
A começar, causa surpresa que o livro a que GJ se dedicou no final da vida tenha um assunto filosófico. A Unidade do Ser, que não se chegou a publicar e cujo manuscrito não está disponível aos investigadores, bastaria para provar o interesse do escritor pela reflexão filosófica. Temos noção da estrutura desse livro, porque, num artigo que publicou no jornal A Luta muitos anos antes de falecer, em 7 de Março de 1910, GJ afirma que trabalhou três teorias, deduzindo-as de uma lei universal. As teorias em questão abordam a influência da radiação nos seres vivos, a transmissão nervosa e os fenómenos mediúnicos. Apesar de serem assuntos diferentes, GJ afirma que derivou essas teorias de uma única lei. Conhecemos inclusive pequenos parágrafos do livro inédito, porque são citados no artigo. O mais importante é o que expressa a tal lei universal: “Só há ligações harmónicas, directas e recíprocas entre as substâncias ou organismos de igual natureza ou de parentesco próximo.” Muitas teses de doutoramento poderiam ser dedicadas à interpretação desta frase notável, que parece antecipar em muitas décadas as noções de “desacopulamento causal”, de Heinz Pagels, e de “ciências especiais”, de Jerry A. Fodor. Se bem se compreende a frase, estará em causa o isolamento de níveis da realidade, o que faz com que os seres existam em mundos isolados uns dos outros, não existindo, pois, o que propõe o título do livro inédito: uma unidade do ser. Por exemplo, nenhum ser humano sente os átomos do seu corpo, e, por sua vez, nenhum átomo experiencia fenómenos mentais. Os átomos e a consciência integram um todo, mas não têm comunicação entre si.
O facto de ter derivado três assuntos diferentes de uma mesma lei, que adjectivou de universal, indicia que GJ estava em demanda do velho objectivo filosófico da compreensão unitária de tudo o que existe, objectivo esse, aliás, que deu origem à Filosofia, no distante séc. VI a.C. Um exemplo dado nesse artigo mostra que GJ procurou algum tipo de continuidade entre fenómenos diferentes. Se a realidade parece ter camadas autónomas, como garantir a ligação entre elas? Repare-se nos fenómenos mentais, como a dor, o prazer, as sensações, as emoções e as crenças. Um século depois da morte de GJ, ninguém sabe como é que esses fenómenos derivam da actividade do cérebro. Os neurónios não os manifestam e, por sua vez, esses fenómenos não têm células. Dois mundos totalmente separados, a precisar de leis-ponte que garantam alguma forma de unidade. GJ ilustra como poderia existir uma continuidade que atenuasse a impressão de isolamento – ou até mesmo de incomensurabilidade – desses mundos: “A imagem psíquica do alimento provoca no epitélio do estômago a formação de suco gástrico.” Este exemplo é precioso: por um lado, um fenómeno mental (imagem psíquica); por outro lado, um fenómeno fisiológico (formação do suco gástrico). A uni-los, a proposta de uma ligação em que os neurónios comunicam com as células estomacais.
Não interessa neste momento criticar o esboço da teoria que GJ partilhou com o público. Haveria muito a criticar, porque o problema não reside no elo final da comunicação entre diferentes tipos de células mas no elo inicial: ninguém sabe nem como nem por que razão o trabalho das células cerebrais é acompanhado de fenómenos mentais, como as imagens. Todavia, é interessante ver que GJ estava apaixonado por problemas filosóficos milenares (o princípio explicativo da realidade, o uno e o múltiplo, o transcendental do ser como o uno) e centenares (a causação mental, a harmonia entre sistemas fisiológicos).
(ii.)
A nota final que acompanha Os Simples, de 14 de Maio de 1892, dá conta da importância do problema da Morte e do Além. O escritor afirma que esse problema se impôs “dilacerante e devorador” à sua “natureza inquieta de religioso e metafísico”, precisando que isso teria acontecido “há anos”. Muito tempo depois, como se viu, a inclusão dos fenómenos mediúnicos no conjunto das três teorias do volume em preparação, e hoje desaparecido, mostra que Junqueiro não descurou a pesquisa acerca da sobrevida. Neste momento, não se sabe se as diligências que terá feito se limitaram à leitura de “milhares de páginas” sobre o assunto ou se foram acompanhadas de experiências ocultistas e espiritistas, como era habitual na época. É estranho que o manuscrito do livro anunciado não esteja disponível aos investigadores; afinal, as três teorias mencionadas e a lei universal são objectivos muito conhecidos da pesquisa filosófica. Como apenas o conjunto de fenómenos mediúnicos destoa nesse conjunto, é plausível que resida nele a dificuldade de acesso ao manuscrito, no caso de existir e de estar escondido algures. Seja como for, a questão da imortalidade da alma e a descrição da terra da morte são temas muito importantes das cosmologias metafísicas de todas as épocas. É significativo que, numa época de grandes desenvolvimentos científicos, GJ tenha tido a grandeza de espírito de os abordar.
(iii.)
Atendendo ao enigma do manuscrito de A Unidade do Ser e ao facto de os objectivos filosóficos anunciados serem conhecidos, não implicando isto que a investigação que o escritor fez deles não fosse marcada pelo génio que revelou na sua obra literária, o grande contributo filosófico de GJ tem passado despercebido. Por exemplo, viu-se apenas em A Velhice do Padre Eterno uma crítica desassombrada à religião organizada. Todavia, não se viu que o livro propõe uma teoria da Salvação – e talvez não exista assunto mais importante para a vida humana, porque, afinal, todas as Éticas aspiram à Salvação (ou Felicidade, Ventura e Bem-aventurança). O livro é uma pequena enciclopédia de formas de Salvação: alude-se ao licor balsâmico produzido pela vinha do Senhor; diz-se que algumas pessoas poderão ser salvas pelos anjos de Deus; personifica-se o Remorso, entidade que teria visitado Judas depois da sua traição; reconhece-se a existência histórica do movimento espiritual que acredita que não há salvação fora de Cristo; e explora-se a possibilidade de a razão ser o meio que possibilita a salvação dos indivíduos e dos povos. Noutras obras, como em A Morte de D. João, há toda uma reflexão sobre os agentes que concedem a salvação: Jeová e o amoroso D. João serão substituídos por Prometeu e por Jesus. Todavia, fica no ar uma dúvida insuportável: também estes últimos virão a ser substituídos? A dúvida não pode deixar de ser formulada porque, no poema “A Árvore do Mal”, d’A Velhice do Padre Eterno, os inquilinos divinos do Olimpo e do Céu poderão ser afastados e substituídos, não sendo de excluir a hipótese de o próprio ser humano vir a ocupar o Olimpo, i.e. tornar-se Deus. A contextualizar tudo isto está uma cosmologia metafísica que une o lodo às estrelas, o grão de trigo ao espírito, a Dor à Ideia, num processo ascensional do inferior ao superior.
Bastam estes três pontos para se ver que muito há ainda a fazer para que GJ possa ser considerado um dos grandes pensadores portugueses. Os versos têm de ser pensados; os parágrafos são equações que esperam soluções; os livros são demandas filosóficas no limite do que pode ser articulado pela inteligência humana. Seria fascinante que surgissem teses de doutoramento que trabalhassem as obras de GJ com os instrumentos sofisticados da Filosofia contemporânea. Este autor, tal como muitos outros em Portugal, tem estado refém dos Estudos Literários, área dependente de metodologias historiográficas que valorizam o documento, a periodização e as categorias estéticas. É necessário resgatar GJ da condição menor de objecto arqueológico! Para isso, é importante recategorizar muitas das suas obras, porque, aparentando ser meros exercícios literários, são, de facto, poemas filosóficos cuja profundidade ainda não foi suficientemente mapeada. Vêm ao espírito os paralelos de autores ancestrais de outros poemas filosóficos, como Xenófanes de Cólofon, Parménides de Eleia e Lucrécio, e, mais próximos no tempo, e de autores que usaram a literatura como forma de indagação filosófica, como Isaac Samuda, João da Rocha, Raul Brandão e Fernando Pessoa. Dizendo de outro modo, GJ recorreu à literatura para promover explorações metafísicas, formulando problemas que não poderiam ser pensados de outra forma.
Que o centenário da sua morte, que este ano se evoca, auxilie a ver a riqueza filosófica da obra do grande homem de letras e de pensamento.
Manuel Curado