Herdeiros

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José Veiga Torres

Todos somos herdeiros. A maioria dos humanos, na pobreza ou na miséria em que, injustamente, vieram ao mundo, e nele têm vivido, nada herdaram de bens materiais: nem casas, nem terras, nem dinheiros. No entanto, todos, mesmo os humanos mais despojados e desvalidos, somos herdeiros de uma riqueza comum incalculável, que, infelizmente, não sabemos reconhecer e valorizar.

A nossa herança comum, de que raramente ou nunca ganhamos consciência, pode parecer-nos fantasiosa, mas é real, e é tão antiga como os milhões de anos da espécie humana. Herdamos, inscritos nos genes que nos caraterizam, milhões de anos de experiências, de vivências, de pensamentos, de alegrias, de frustrações, de litígios e de compromissos, tudo o que, no decorrer de milhões de anos, os sucessores do “homo sapiens” vêm criando e permanece através das múltiplas civilizações da dispersão humana pelas várias regiões do planeta, explorando-as e inventando novas e melhores condições de vida. 

Devíamos ser capazes de apreciar as ousadias e os riscos de quem, por nós todos, descobriu o fogo, de quem atravessou misteriosas florestas, rios e mares, com   rudimentares instrumentos inventados para caçar, pescar e superar obstáculos reais ou imaginados. Da sua sobrevivência depende a sobrevivência das caraterísticas dos nossos genes. Descobrindo, em arriscadas experiências, o que na natureza era benéfico, para alimento e cura, e o que nela era maléfico e mortal, os nossos mais recuados antepassados deixaram-nos as tradições alimentares e as tradições medicinais da nossa própria sobrevivência. Os posteriores desenvolvimentos da ciência alimentar e da ciência médica, mesmo os mais modernos, não deveriam ofuscar o reconhecimento da herança das arriscadas experiências dos nossos mais primitivos antepassados.

Para lá dos efeitos imediatos dessas experiências arriscadas, os antepassados mais primitivos e todos os seus sucessores, ao longo dos séculos, desenvolveram e tornaram-nos herdeiros da maior de todas as riquezas, que é a capacidade crescente de inovar, pela acumulação e cruzamento dos conhecimentos, e a capacidade de os relacionar, organizar e controlar com novas experiências e iniciativas. Desta capacidade nasceram as grandes e pequenas civilizações em que os humanos se têm desenvolvido, e de que todos somos herdeiros.

Habitualmente, consideramos o nosso tempo e o nosso contexto civilizacional como o melhor, o mais avançado, o modelo universal de todos os povos. Esquecemos que o que somos é um conjunto de heranças civilizacionais de outros povos, que talvez julguemos inferiores. Objetivamente, a História comprova que os povos devem uns aos outros os conhecimentos das formas de viver, de se abrigar, de se alimentar, de conviver, de se exprimir, de se organizar. Os povos mais orientais e os mais ocidentais representam os mesmos seres humanos que, de uma mesma origem, derivaram por todos os cantos do planeta e que, depois da deriva exploratória, estão agora (pelo menos desde o século XV) reencontrando-se por relações comerciais, diplomáticas, culturais e políticas, ou por movimentações migratórias de vária motivação, numa rede de necessidades e interesses universalmente comuns.

A consciência desta realidade devia levar-nos a respeitar igualmente todos os povos da nossa humanidade comum. Todos fomos e ainda somos colonizados e colonizadores. Todos herdamos conhecimentos de outros povos e os outros povos herdaram e herdam conhecimentos que nós produzimos e transmitimos. 

É verdade que este processo de heranças universais, historicamente, tem sido conduzido, frequentemente, com violência, com agressividade, espoliando-se os povos uns aos outros, levados pela sua ocasional (precária) superioridade técnica e arrogância cultural. Infelizmente, todos somos, também, herdeiros de experiências de maldade, quer como vítimas de quem nos colonizou, quer como agentes colonizadores. O verdadeiro desenvolvimento humano só é possível pela mútua e pacífica relação, o que exige uma mútua aprendizagem, que, modernamente, tem nos regimes democráticos, o contexto político e social mais favorável, apesar de os regimes democráticos, ainda, não estarem imunes às violências oligárquicas, que resistem à valorização do povo e à intervenção deste no poder das causas públicas.

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