Este filme, de 2022, foca-se sobre uma personagem de alto gabarito, tanto em termos intelectuais, como na habilidade que brota, agradando ludicamente os fans, cada vez mais rendidos aos seus pés. Revelando-se, desde o início, que esta provável figura fascinante, interpretada categoricamente pela ilustre Cate Blanchett, trazia conteúdo para um espetador exigente como eu. A pergunta que obviamente se colocava, foi como esta mulher, que chegou, por mérito próprio, a um patamar elevado de notoriedade, conseguia manter-se na ribalta, gerindo a sua proeminente carreira, as suas emoções e vida pessoal?
Essa questão obteve uma primeira ténue resposta, designadamente quando a protagonista da trama, a famosa maestrina Lydia Tár, concede uma entrevista num auditório à pinha, com o objetivo de anunciar que a sua orquestra vai tocar a sinfonia nº 5 de Mahler (quiçá a mais importante e desafiante), após ter trilhado, com êxito assinalável, as outras oito obras do autor. Bajulada pelo moderador da entrevista, que relata pormenorizadamente o currículo impressionante de Tár, cimentando intrinsecamente o ego desta, ajudando-a a prestar um excelente desempenho comunicativo, realçando a sua providencial ação na condução harmoniosa da peça musical, em simultâneo com a transcendentalidade sentimental do tempo e do espaço, modelo para associar vincadamente à feérica composição de Mahler.
Contudo, e apesar de quanto conquistou, Tár joga tudo neste evento, sabendo-se de antemão que o excesso de perfecionismo e rigor vai certamente afetá-la, tendo em conta este projeto de grande envergadura. A prossecução desse meu palpite erosivo evidencia-se, gradualmente, com o decorrer da narrativa, quando numa das embrionárias cenas, Tár orienta uma aula destinada a jovens aspirantes de maestros, aplicando uma bravata ostensiva a um aluno PAN genérico, que se recusou a executar um tema dum compositor indicado por ela. Nem mesmo secundando-se na profícua relação lésbica, que mantém com Sharon, um membro destacado do grupo orquestral, totalmente submissa a Tár, e com uma filha adotada em comum, Tár nem por essa razão parece tranquilizar-se, não obstante a toada pesporrente com que se pavoneia.
Essa degradação de Tár acentua-se consideravelmente nos ensaios, interrompendo e corrigindo, por inúmeras vezes, os seus atónitos músicos, com a finalidade de arrebatar aquela distinta sinfonia, transformando-a em algo quimérico e divinal. Essa obstinação de Tár empurra esta, para a dispensa do seu colaborador mais experiente, um crítico com créditos firmados, querendo, a todo o custo, personalizar a direção da melodia de Mahler, anulando qualquer possibilidade de debate interno.
Porém, as coisas pioram ainda mais devido à sua paranoia e mau feitio, que cresce dia para dia, perdendo a sua fiel assistente Francesca, uma mulher crucial no apoio logístico e no elo que fomentava com os média. Juntando a esse facto, o escândalo que rebenta na comunicação social acerca dum suicídio duma jovem violoncelista, supostamente originado pelo assédio perpetrado por Tár, reveses que põem em causa as expectativas otimistas em torno desse badalado espetáculo.
Em linha com as características da sociedade atual, muito dada ao tribalismo cultural, este exemplo de Lydia Tár demonstra que o poder, seja ele qual for, está sempre sujeito ao escrutínio público e ao fio da navalha, caso eventuais comportamentos abusivos de prepotência, crueldade e arrivismo sejam esmifrados até ao extremo.