“Mal viver”  e “Viver mal”

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Alcino Pereira

Abordando a atualidade do cinema português, indico dois filmes realizados por João Caniço, estreados este ano nas salas de cinema, “Mal Viver e Viver Mal”, que além de se intitularem com dois títulos funestos, de cariz praticamente semelhante, ambos retratam pontos em comum, designadamente o mesmo cenário, a mesma ação em simultâneo, as mesmas personagens, mas narrando contextos diversos e situações distintas. 

Estando estes dois enredos eternamente interligados, para tirarmos as devidas ilações, é absolutamente imprescindível visionar os dois filmes. Imbuído nesse prisma, enquanto em “Mal Viver” o encenador prefere realçar, exclusivamente, as vicissitudes relacionadas com a gerência do hotel e os colaboradores que lá laboram, relegando para um plano insípido, a prestação dos supostos clientes, no segundo filme “Viver Mal”, as posições de relevo alteram-se significativamente, optando por destacar e pormenorizar as incidências afetas aos clientes, deixando o pessoal do hotel, reduzido apenas, a um papel meramente formal. 

Diante destas sinopses detentoras dum enredo convergente e inusitado, entendi, expectante, assistir aos dois filmes, avançando para o filme “Mal Viver”, notando, logo de início, uma atmosfera sombria e inexorável, plasmado pela categórica primeira cena, pese embora o enquadramento tranquilo e acolhedor proporcionado por um Hotel localizado em Ofir. Essa cena refere-se ao regresso da jovem Salomé para a sua mãe Piedade, após a morte do seu Pai, gerando de imediato um mal-estar em Piedade, uma mulher frustrada e empedernida, que nunca demonstrou, nenhum resquício de afetividade por Salomé. Ora se, porventura, já existia um ambiente crispado, conservado numa espécie de lume brando, salientado pela família que assegura a gestão do estabelecimento hoteleiro, constituída por a patriarca Sara, e as suas filhas desavindas Piedade e Raquel, a chegada de Salomé ativa essa propensão belicosa, somente mitigada, pela maneira impecável como estas tratam e servem os exíguos clientes. Com os problemas financeiros do Hotel a pairar como uma mácula difícil de tornear, e os desentendimentos notórios entre Piedade e Salomé, a conduzirem a narrativa em direção ao precipício, o espectador detém-se siderado, ao verificar tamanha discórdia e amargura, não perspetivando outra coisa senão um final confrangedor.

Visivelmente intrigado com os moldes como decorreu “Mal Viver”, cito, de seguida, o segundo filme “Viver Mal”, que, em termos de registo, mantém a toada perniciosa da história anterior, neste caso perpetrado por três famílias que se instalam no tal Hotel de Ofir. A produção do filme, ao esmiuçar as particularidades dum grupo de cada vez, traz a lume uma parafernália de segmentos de irritação, onde se consta a traição, distúrbios conjugais, ódios latentes, e um mantra de interesses obscuros e sinistros. Só que, ao contrário de “Mal Viver”, os clientes, ao saírem daquela estada, parecem terem sanado, temporariamente, os danos ali patenteados. 

Não obstante este formato inóspito e malsão com que João Caniço nos brindou, através destes dois filmes, sem paralelo no mundo do cinema, na realidade, talvez ele nos quisesse mostrar que uma ecologia agitada e áspera pode, eventualmente, influenciar negativamente outros indivíduos que estejam no mesmo reduto, justificando o que aconteceu nesta correlação corroída, infligida tacitamente por fornecedores e clientes. 

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