Memórias de um cortejo que não vi

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Desde há muito, sobretudo, a partir da altura em que a minha família deixou definitivamente Viana, que as memórias da infância e adolescência residem na condição onírica semelhante aos pensamentos e ideias que aparecem durante o período do sono.Raízes flébeis em chão movediço? Talvez, que nem nos amigos me revejo, que os afetos se esvanecem como água de um riacho ao escoar entre os dedos, embora de início, pareçam indeléveis como montanhas de aço aos olhos de uma criança de seis anos. 

Tal como meu pai, também hoje me sinto um estrangeiro quando visito a minha cidade. É horrível experienciar esse sentimento… A cidade mudou pouco de aspeto. Mas bastou mudar o rio para mudar muito. É que a cidade era o rio e o resto eram casas e ruelas como hoje. Isso é bom. Mantém intacta a identidade. Mas ao rio porque lhe fizeram tanto mal? Dantes era fértil. Lembro-me de ser lavrado pelos canoístas da lampreia nas restingas da maré-vaza e como o mar o irrigava na preia-mar, fazendo esvoaçar as limícolas que se alimentavam nas areias da Senhora com o mesmo nome.  Lembro-me das fabulosas serenatas na Senhora d’Agonia quando a ponte ardia toda, enquanto ao lado, quase na margem, o jardim rescendia de luzinhas em chama de lamparina no interior de copinhos multicolores pendurados nas tílias, parecendo estendais luminosos nas varandas contíguas.

Não sei se isto aconteceu uma só vez, mas só assoma uma só vez à memória imberbe, que de dia sobressaíam bandeirinhas de papel e de papel e madeira pintada de fresco de que eram feitos os arruados. Estes rescendiam o mesmo aroma que os brinquedos das tendas junto ao arraial dos carrosséis e dos melões entre os estoiros produzidos por homens sudando em mangas de camisa arremessando um engenho sobre carris que ia esbarrar numa espécie de caixa. Muitos não o conseguiam e eram humilhados por fortes gargalhadas logo abafadas pelo estoiro de um arremesso bem-sucedido. Este era o som e o cheiro da festa. Que tinta seria aquela que impregnou de tal modo o meu hipocampo que ainda hoje sinto o seu perfume? O melão era comido na hora, depois de um ritual de cheira um, cheira outro e toques que só meu pai aparentemente conhecia. Reitero «aparentemente» porque a mim sabiam sempre a casca. O brinquedo – um camiãozinho pregado com taxas de pontas esborceladas – esse ia passar a noite na minha cama, até se escochar pelas rodas no dia seguinte por excesso de peso na carreta.

Mas pesados seriam os andores levados aos ombros por possantes pescadores na procissão. As minhas irmãs eram figurantes dos quadros bíblicos, mas nunca se queixaram do peso das coroas e adereços, posto que andavam todo o dia com as vestes e ornatos. Minha mãe obrigava-me a fazer uma genuflexão à passagem do pálio. Mas o facto era idêntico à que ela fazia no fim da missa junto à pia da água benta. Afinal era o fim do cortejo religioso.

O outro, o pagão era o acme do meu gaudio.  Meu pai fechava a loja de fazendas que ficava em frente ao jardim dos copinhos sem antes ter trazido para fora uma verdadeira parafernália de armações que elevasse o nível de visibilidade do desfile. Hoje há espaço para bancada, mas em criança o jardim estava vedado para o fogo-preso dos Silvas fogueteiros até aos limites. Os carros eram puxados a bois e isso fazia-me sentir triste ao observar o olhar embotado dos animais. Eu ficava no cimo do escadote mais alto e até seria forçado a sentar-me, não fora cair outra vez quando por milagre me salvei depois de ter caído do quarto andar do prédio ao lado onde morava. Quem sabe se as genuflexões forçadas foram recompensadas nessa tarde. 

Mas a tarde ainda era cedo e o cortejo se vislumbrava ainda no som dos Zés Pereiras quando surge o senhor Doutor. Olhou para mim, para meu pai, que me forçou logo a descer do escadote para ceder lugar a Pedro Homem de Melo. Então furei entre um emaranhado de pernas e lá consegui alcançar a borda do passeio. Porém o ângulo de visão era tão baixo, que só me lembro de um naco de boroa na cabeça e do olhar dos bois quando algum carro alegórico passava. 

Jorge Leitão

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