“Carta aberta” ao Eng.º Óscar Mota (II)
O Sr. Alexandre Geraldes, o “Mestre Alexandre”, teve um papel fundamental na formação de dezenas de excelentes técnicos da Construção Naval que passaram pelos ENVC (o Sr. Torcato, como refere, foi um deles). A grande maioria, incluindo muitos desenhadores, começou na Sala do Risco, de onde saíam depois para as diversas áreas do Projeto, posições de chefia na Produção e para o exterior, mesmo para o estrangeiro, onde deram provas de elevada competência. No que me diz respeito, de formação mecânica, foi também com o Sr. Alexandre que iniciei a aprendizagem nestas matérias. Estagiei na Sala do Risco durante um ano e foi o relatório desse estágio que funcionou como mais-valia, permitindo a minha contratação imediata pela Setenave.
Durante o estágio, encarregou o Sr. Joaquim, que tinha vindo com ele dos estaleiros da CUF, tal como o Sr. Hipólito, de, entre outras coisas, me ensinar a planificar “à mão” uma chapa do costado pelo “Método Francês”, processo que depois repliquei para planificação numérica, utilizando uma rudimentar máquina programável Texas Ti 58. Nesta altura já não se planificava “à mão”, era já a fase da Sala do Risco à escala 1/10 e existia uma máquina analógica de planificação, agora à guarda da Câmara Municipal, que espero seja preservada.
Recordo com saudade as longas conversas que tivemos, algumas técnicas, muitas sobre a sua vida em Lisboa, sobre as lutas políticas no tempo da ditadura (aqui os seus olhos, muito azuis, brilhavam mais), etc., etc. “Herdei” do Sr. Alexandre parte do seu espólio técnico, alguns livros, apontamentos que ele trouxe da “Oficina de Trazado Y Sala de Galibos” de Cadiz, de quando lá esteve algum tempo a documentar-se para fazer a transição da Sala de Risco de escala 1/1 para 1/10 e uma relíquia, original, de que não sei a origem, mas que estava na sua posse, que é um caderno de apontamentos de mecânica, em caneta de tinta permanente, com desenhos à mão livre de uma qualidade impressionante.
Abro agora um parêntesis para recordar o CADESNAVE, sistema de CAD/CAM desenvolvido nos ENVC, exemplo raro de I&D nas empresas na época, também ele, em grande parte, fruto da escola do Mestre Alexandre. Quando o Eng.º O. Mota decidiu criar o Gabinete de Cálculo, escolheu o único engenheiro dos ENVC com o perfil adequado para a tarefa, o Carlos Rodrigues. Tendo este a inteligência necessária e o espírito curioso e criativo, indispensáveis, sendo de formação eletrotécnica, faltavam-lhe os conhecimentos navais que um sistema destes requeria, mas que o Manel Viana, um dos pupilos favoritos do Mestre Alexandre, possuía. Manuel Viana – homem de fino humor, herdado do pai, o Sr. Viana, operário chefe dos encanamentos – também ajudou a ultrapassar as enormes dificuldades que iam surgindo. Formaram, com outros colaboradores, uma equipa que desenvolveu um trabalho notável (sei bem do que falo, já que acompanhei de perto todo o processo), com recursos reduzidos, uma vez que os necessários ou ainda não existiam na altura ou eram excessivamente caros.
Com o Eng.º Taborda Ferreira, referência incontornável da Construção Naval, de saber enciclopédico e grande sentido de humor, por vezes cáustico mas sempre certeiro, continua a ser um enorme prazer conversar. Pena que agora, pela distância e afastamento, isso seja tão raro. Continua a enviar emails e vídeos interessantíssimos que arquivo e reenvio para as minhas filhas.
Termino sem deixar de referir que outros nomes marcantes haveria a recordar. Por exemplo, o Sr. Júlio Costa, também dos de Lisboa, que com tanto carinho me tratava. Mestre na arte da metalurgia do ferro e do bronze. Sempre que havia algum trabalho especial, nomeadamente reparações de hélices, em que era exímio, mandava-me chamar e dava-me, então, preciosas lições, de que sempre lhe ficarei grato.
O escrito já vai longo e mais longo ficaria se continuasse a expor tantas e tão gratas recordações de vivências passadas. Outras oportunidades surgirão. Fica, então, o melhor abraço para si.
Santos Lima
P.S. – Com a aprovação da dragagem do canal e do anteporto, que será posta a concurso em Setembro, a nova doca irá avançar em 2019.
(Foto: Primitiva sala do Risco, a trabalhar na escala 1/1. Aquela que era considerada a melhor escola a preparar especialistas para as mais diversas áreas dos ENVC. (Arquivo F. Meira).