Memórias e afectos em tempo de guerra (I)

A. Lobo de Carvalho
A. Lobo de Carvalho

Os tempos vividos no decurso das comissões militares, no ex-Ultramar, ficaram indelevelmente marcados na memória dos que por lá deram o melhor de si próprios, naquilo que foi a primavera das suas vidas. De tal ordem que, passados quase 60 anos desde o início da subversão, perduram e sucedem-se os convívios de sã camaradagem das unidades mobilizadas, como que dizendo que as amizades forjadas em clima de coesão, angústia, sofrimento e saudade, são as mais duradouras e nem a morte as consegue apagar, porque os que restam sempre recordam os quer já partiram para a vida espiritual.

A estação da Primavera, com dias maiores e mais límpidos, é a época eleita para o reencontro dos vivos, que recordam, em locais aprazíveis um pouco por todo o país, os momentos de dificuldade e também os agradáveis. Basta ver os jornais diários, em que são convocados os ex-militares das muitas unidades mobilizadas para se juntarem em convívio e poderem, assim, dialogar abertamente sobre um passado da sua juventude que jamais esquecerão.

Também fui militar em África, mais concretamente no Norte de Angola, terra que me ficou na alma e que jamais esquecerei, pela sua beleza, pelas suas gentes, pelo seu potencial, pelo cheiro daquela terra avermelhada, pela sua imensidão!… Uma terra maravilhosa, que me deixa uma enorme saudade, e de que pretendo partilhar com os leitores alguns apontamentos (desculpem-me se vos maço) da minha comissão. Como muitos milhares de jovens, dei o meu melhor e não me arrependo absolutamente nada das atitudes que tive de tomar. Não fui nem sou herói, e ainda bem, porque a democracia acabou por abastardar este termo, adaptando-o para quem desertou das fileiras das Forças Armadas!…

Não que tivesse passado os dois anos de comissão no ar condicionado! Na verdade, tinha a especialidade de Atirador e a minha Unidade, o BCaç 1900, esteve durante um ano na zona de S. Salvador do Congo (sector F), tendo como missão controlar e interceptar infiltrações de guerrilheiros vindos da RDCongo, ou o inverso. As subunidades estavam todas localizadas próximo da linha de fronteira, e uma delas, a Companhia sedeada no Luvo, tinha mesmo um posto fronteiriço nesta localidade. A sede do BCaç era na Fazenda Mamarrosa, uma CCaç na Canga e outra em M’pozo.

A minha Companhia, a CCaç 1652, estava situada a cerca de 6 kms da fronteira, num local baptizado de Magina, sem população civil, perdido entre matas cerradas e morros de capim, com o grande rio Luvo ali perto, e cuja zona de acção delimitava com a da Companhia da Buela, no rio Lufusse. Semanalmente, e por escala de Grupos de Combate, fazíamos a escolta para trazermos abastecimentos, sendo o único dia em que interagíamos com população civil na Cidade de S. Salvador, onde sempre aproveitávamos para comer um bom churrasco no restaurante Estrela do Congo, fazendo assim uma pausa nos enlatados das rações de combate. Foi nesta cidade que pude conhecer e conviver, sempre que ali me deslocava, com o então Capitão Melo Antunes, comandante da Bateria de Artilharia, que viria a ser, meia dúzia de anos depois, uma relevante figura na revolução de Abril de 1974. E foi aqui, também, que realizei o meu baptismo de voo numa avioneta pilotada por um colega, o Alferes Varandas, natural de Aveiro, que mais tarde fez carreira como piloto na TAP. Dizia ele que quem consigo voasse tinha de vomitar, pagando como multa uma grade de cervejas. Como não enjoei, apesar do esforço que fez, teve de ser ele a pagar!…

A. Lobo de Carvalho

(Foto: Portugal Visto de Fora – blog Ultramar)

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