Era uma vez uma menina que vivia na natureza com a sua tribo. Ela vivia uma vida muito simples, mundana, porém, recheada de riqueza. O seu maior prazer era correr entre os bosques enquanto dançava e cantava alto e bom som. Certo dia, e com algum esforço, finalmente conseguiu trapos suficientes para criar os seus primeiros sapatos de cor rosa. Estes sapatos eram-lhe tão preciosos que os levava até para a cama. Quis o destino que num dia mais cinzento, enquanto fazia as suas caminhadas, uma carruagem dourada cintilante parasse junto a si. Encantada pelo imenso brilho, uma fada vestida de diamantes azuis convidou-a para ir consigo, não tendo a menina como recusar. Mal sabia ela que iria acabar presa num castelo onde teve de aprender a ser boazinha e a seguir os costumes praticados pelo povo, tendo, como maior punição, de se livrar dos seus sapatos preferidos. Nesse dia, e todos os restantes até à sua idade adulta, o seu brilho interior desvaneceu. Não mais cantou, não mais dançou. Até ao dia em que não mais quis viver.
Esta fábula, de cariz figurativo e dramático, espelha muito aquilo que acontece com imensas mulheres. A sociedade desenvolvida oferece à mulher demasiadas tentações, sendo bastante fácil caírem numa armadilha disfarçada de boas intenções. Por outro lado, a mesma exige da mulher uma lista interminável de deveres e suposições. É expectável que a mulher se comporte de determinada maneira e, quando isso não acontece, haverá sempre aquelas que sucumbirão às pressões externas, ainda que de uma forma inconsciente. Contudo, dentro de toda a mulher existe um espírito selvagem. Uns chamam-lhe fogo interior; outros dizem que se trata de instinto; e outros apelidam-no de sexto sentido feminino. Seja como for, foi-nos concedido de forma gratuita, e muito poucas fazem bom uso desta poderosa ferramenta. Isto é o mesmo que dizer que todas nós possuímos uma força que nos caracteriza, que nos move. Temos desejos e sonhos, mas também temos uma força fora do normal. Sabemos ao mesmo tempo ser lobas solitárias, assim como integrar a matilha quando necessário.
Todavia, nos tempos modernos em que nos encontramos, há uma espécie de convite sorrateiro para ignorarmos ou até extinguir este nosso lado mais selvagem. É tão mais fácil e, de certo modo, até desejável, sermos surdas e mudas, bondosas e cegas, obedientes e submissas. Assim, contra a nossa própria natureza, caímos muito facilmente na rede impercetível que nos torna imóveis e que nos faz esquecer quem somos e o que nos faz sorrir por dentro. Numa rede que nos retira estes mesmos poderes, poderes que algumas mulheres só voltam a sentir quando são mães pela primeira vez. Eis o verdadeiro perigo: quando uma mulher decide deixar de apoiar, intencionalmente ou não, outra mulher, e o espírito energético coletivo, é a mesma coisa que se recusar a lutar por si mesma e pelo futuro de todas nós, uma vez que a energia perdurará estagnada ao invés de se mover numa direção positiva.
É por isso então urgente que a mulher consiga resistir a estas tendências e às armadilhas do dia-a-dia, bem como ao silêncio que carrega em si por eternidades. A longo prazo, não são a rotina e o sufoco que acabam com o nosso fogo, mas sim a falta de alegria, direção e paixão pela vida. E por experiência vos digo que não é nada fácil puxar para o lado de cá quem tanto tempo viveu no lado de lá. Quando só se conhece uma realidade é muito fácil ficar convencido que essa é suficiente, estando-se a um pequeníssimo passo de total codependência de algo ou de alguém. A verdade é que a mulher selvagem é tudo menos isto. Ela é vida, é ânimo, é ousadia, é luta, é coragem e amor-próprio. É a soma da sensibilidade e o instinto para perceber o que lhe serve ou não. E sim, precisamos muito de mais mulheres assim. Mulheres sem medo da condenação barata e capazes de se libertarem com muita pressa desta energia antiga que nos mantém submissas e vítimas ao longo dos tempos. Ai mulher! Precisas de ti hoje, mais que nunca, e fica sabendo que o universo adora um espírito tenaz.
Agora, peço cuidado, pois apesar desta mensagem ser claramente destinada ao sexo feminino, não queiram os homens entender nas entrelinhas alguma espécie de revolta. Muito pelo contrário. Se os meus leitores se reverem em algum contexto neste escrito, queiram por favor fazer uso destas palavras na mesma medida. Só acho que andam aí muitas mulheres adormecidas. Por agora, o pensar já vai longo, mas gostaria de terminar esta reflexão com uma máxima do poeta Charles Simic, deveras ajustado a todos nós: “aquele que não sabe uivar não encontrará a sua matilha.”