Nas bocas do mundo…

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Em 80 anos de vida, não lembro de a Igreja Católica andar nas bocas do mundo com tamanha frequência e pelos piores motivos: escândalos com crianças e jovens, o único pecado que Jesus sancionou com extrema severidade. As bocas do mundo ouvem-se nas rádios e televisões, nos jornais e revistas, nas redes sociais da net, no Google e, portanto, também às mesas dos cafés, nos restaurantes, nos clubes sociais, na rua, nos meios de transporte públicos, etc, etc.

O pior é que as falas não são, obviamente, laudatórias. Pelo contrário, desfazem, hora a hora, a aura de santidade de que se revestiu a própria instituição, deixando a Santa Madre Igreja em estilhaços e mais conspurcada que o sujo encardido.

Há duas razões para tal situação: a primeira razão tem séculos de existência, não do início do cristianismo, mas aí pelo século III ou IV, e daí em diante, a difusão de uma doutrina que, no mínimo, exagerava na interpretação evangélica, considerando que a humanidade deveria seguir um caminho de dor, de resignação, de sofrimento, de desprazer, em tudo o que dissesse respeito à natureza e esta contrariasse ou se substituísse, no entender dos teólogos hiper-moralistas (ou pior, moralistas falsos), ao mundo espiritual. As poucas alegrias e prazeres de que o ser humano dispunha por natureza eram rechaçadas ou pela boca do confessor radical ou pelo pregador tonitruante e pela penitência do cilício ou, nos casos por esses clérigos considerados graves, pelos tormentos cruéis, pelas prisões e, não raras vezes, pela imolação na fogueira.

O povo, crente ou não crente, até é tolerante e compreensivo nestas matérias dos “pecados da carne”, seguindo, de resto, as palavras de Jesus naquele enternecedor episódio da Mulher adúltera. Conta o evangelista João: quando a populaça ia fazer “justiça” pelas próprias mãos, apedrejando a infeliz mulher até à morte (assim mandava a lei ou os bárbaros costumes) Jesus apenas pronunciou estas palavras: “Quem não tiver pecados que atire a primeira pedra”. E um a um, com o rabinho entre as pernas, todos abalaram. (Vale a pena ler toda esta cena evangélica).

Mas a segunda razão desta fúria popular contra o clero católico é porque o catecismo católico romano é tão rigoroso em matéria de afetos e da sexualidade que inundou o mundo de pecados, de infernos, de maldades, de crimes, ao ponto de, desde criança, um crente pensar que um ser humano bom, reto e temente a Deus é o que se abstém dos “pecados da carne” e apenas isso.  

A liberdade intelectual pagou um preço elevado (ver a biografia de Giordano Bruno, entre muitíssimos mártires da “Santa” Inquisição), mas os prazeres da carne (na realidade, não mais que as forças da Natureza) não ficaram atrás da liberdade de pensamento, em matéria de duras e selváticas penas. Contava (na RTP 1 e há cerca de um mês) o nosso contemporâneo Frei Bento Domingues que, sendo ainda menino, participou, como habitualmente, na missa dominical. O celebrante, na hora do sermão, proclamou, em altos brados, um aspeto da doutrina católica, prescrita não nas Palavras da Salvação mas no catecismo sebento, de tantas dedadas, o seguinte trecho: “Os inimigos da alma são três: o mundo, o demónio e a carne”. Aquele acentuado vozeirão do celebrante causou uma forte impressão no menino que, ao chegar a casa, amedrontado, abeirou-se da mãe e contou: “Oh minha mãe, hoje o Senhor Abade falou nos três inimigos da alma: o mundo, o demónio e a carne. Ora o demónio está certo, mas não percebo o pecado da carne que, aliás, na nossa casa é tão pouca”. A Mãe atalhou: “não te preocupes, meu filho, isso não passa de conversa de padres “.

Ora, não admira que, enquanto a instituição humana “Igreja Católica” conseguiu esconder o que se passava entre os seus clérigos quanto aos comportamentos escabrosos (entre os quais, a pedofilia e outros abusos sexuais) e o poder da censura funcionava, era tudo um forrobodó. Mas a situação mudou radicalmente e aquilo que os “beatos” clérigos classificavam de o “lamaçal do pecado” acabou por conspurcar a própria Igreja, de uma maneira tal que os seus adversários batem as mãos de contentamento. Os fiéis religiosos, no mínimo confusos, andam tristes. Mas uma amiga minha, tão amiga de frequentar as sacristias quanto eu de ser livre e independente, dizia que “a Igreja está bem e recomenda-se e que a culpa de um ou outro clérigo apenas classifica os próprios prevaricadores”. Pois eu digo que, neste momento de tempestade e angústia geral, a Igreja (instituição) está a portar-se cobardemente, ao não assumir as suas inapagáveis culpas e, por outro lado, ao deixar esses clérigos entregues às feras (na realidade, também vítimas da referida mentalidade tacanha de séculos e do celibato obrigatório).  

PS. Fiquei satisfeito ao saber que o Bispo de Viana do Castelo, D. João Lavrador, sendo bispo de todos os fiéis, se assume como um clérigo moderno, adepto da renovação da Igreja e, ao que deduzi, apoiante das propostas do Papa Francisco. Os católicos de Viana bem precisam de um pastor de mente arejada.

Manuel José Ribeiro

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