«Nós e o mar»

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Situada a poucos km de terra existia uma pequena ilha onde vivia um pescador, numa casa de praia, à beira mar. A pequena casinha era toda ela feita de madeira velha e desgastada, com telhas a desbotar no telhado.

O protagonista desta história tinha umas compridas barbas acinzentadas num rosto crestado e envelhecido pelo sol e sempre fora pescador. Vivia com a mulher que já tivera melhores dias e encontrava-se num estado lastimoso devido à doença que a consumia. Apesar de tudo, o velho pescador nunca perdeu os seus hábitos. Todos os dias às sete em ponto ele subia para bordo rumo a mais um dia de pesca em alto mar. Contudo, cada vez mais a pesca parecia não ter a mesma influência nele que tivera no passado. Há uns anos dava tudo por ter dias como aquele, com o sol a brilhar no céu escondido por detrás de uma nuvem que o ocultava parcialmente e dava lugar a uma brisa refrescante.

O pescador olhava para o mar, mas nada do que ele pudesse ver o faria sentir aquele afeto que tivera anos antes. O mar, tal como ele, já tivera melhores dias. Em tempos límpido e de uma pureza infinita, estava agora sujo e imensamente poluído. Os peixes, que antes saltitavam e chapinhavam na água com uma tal euforia contagiante, eram agora raros, ou mesmo inexistentes. Aquele fascínio que o pescador nutrira pelo mar era agora substituído por um sentimento de desconcerto. Havia dias em que o pescador não apanhava um único peixe. Os habitantes daquela velha casinha à beira mar passavam agora um período de exasperada fome. Nesse dia, o pescador alimentara-se de um pedaço de pão escuro duro com alho, na esperança de poder enganar a fome que sentia. Nessa noite deu por si num sonho, sozinho em alto mar. Não tinha remos nem motor mas mesmo assim permanecia lúcido e calmo, como se nada de mal lhe pudesse acontecer naquele lugar sagrado.

De repente ouviu uma voz que o chamou. “Vicente, Vicente”, era o seu nome. A voz provinha do alto duma cabecinha azulada que chamava freneticamente. “Vicente, Vicente”. A voz tornou a chamar. O pescador virou-se para a encarar, e a voz falou, desta vez mais baixo “ Vicente, és um pescador sensato. Já viste o que os homens estão a fazer à minha casa? Estamos todos a morrer, o mar já não é como dantes e tu já te apercebeste disso. Espero poder confiar em ti a tarefa de cuidares daquilo que é de todos por direito, incluindo teu. Ajuda-nos a salvar o nosso lar, o teu lar. Cuida do mar, Vicente. Cuida dele…” O peixe acabou de falar e ouviu-se uma forte pancada. Vicente acordara. Por momentos ficou confuso e tentou encontrar uma explicação para o que acabara de presenciar. Seria aquilo uma mensagem? Um pedido? Era como se lhe confiassem a tarefa mais importante do mundo, aquela à qual não havia escapatória senão cumprir com êxito. Voltou a adormecer passados alguns minutos num sono profundo.

O dia amanheceu. Eram 6h30 quando, tal como todos os dias, o pescador se levantou. Havia apenas uma pequena diferença, hoje não iria para o mar. Pensara muito e chegara à conclusão que era seu dever salvar o mar. Apesar de tudo, ainda não sabia bem como o fazer. Nesse dia decidiu fazer uma visita ao porto da sua terra.

O porto estava sempre cheio de pescadores, alguns seus conhecidos, outros nem tanto. O propósito da sua visita era obter alguma ajuda neste combate ao problema do mar. Porém, esta não correu exatamente como esperado. Conseguira no máximo cinco apoiantes, pois os restantes não se incomodaram em ajudá-lo, visto que o negócio lhes corria como esperado e era inútil tentar mudar o que já estava feito.

Nessa tarde, os seis reuniram-se para combinar o que fazer. O pescador já pensara em várias opções e uma delas passava por tentar persuadir os mais novos. Eram os mais novos que constituíam o futuro e também eram eles quem daria mais importância a este desígnio. Acreditava que seriam estes os mais indicados para explicarem a importância de todos agirem em nome do Mar. Assim, juntaram-se os obreiros desta luta e, durante dias, percorreram o distrito. Deslocaram-se a todas as escolas e falaram aos mais novos acerca sobre o estado atual do mar com o objetivo de sensibilizar e educar a população escolar para a problemática do Lixo Marinho e do que todos poderiam fazer para que se voltasse a ter a água cristalina que em tempos reinara o mar.

Depois da visita a várias escolas, houve uma que os recebeu de forma particularmente surpreendente. Contrariamente às restantes, aquelas crianças mostraram-se invulgarmente atentas. Não se ouvia um som e todas elas se encontravam de olhares atentos, fixos nos seis homens à sua frente. Quando acabaram foram aplaudidos e convidados para partilharem o lanche com eles. Esta visita captou a atenção do pescador e, meses mais tarde, apoiado e inspirado por estas mesmas crianças e pais, o pescador e o seu grupo fundaram a Associação “ Nós e o mar” que defendia a proteção do mar e dos seres vivos que fazem dele sua casa. Aos poucos, ganharam fama e reuniram milhares de voluntários que aderiram à causa na esperança de poderem realmente melhorar o estado do oceano. Fizeram-se limpezas voluntárias nas praias de toda a ilha e, mais tarde, o projeto percorria cidades de outros países.

A promessa do pescador fora cumprida. Em pouco tempo, o mar passou a ser o lugar de eleição que era antes. Já se viam peixes a nadar, o reflexo das pessoas na água e, de vez em quando, um golfinho que vinha dar à costa.

Patrícia Lopes

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