Neste tempo de isolamento tendo a acordar cedo. Um comportamento paradoxal à minha natureza habitual. Levanto-me diariamente num passo de aceitação, sem qualquer melancolia. Acordo, visto-me e tomo o pequeno almoço. Se for um bom dia não tenho de sair de casa para as compras necessárias. Não tenho de trocar o fato de treino nem ver-me ao espelho.
Nos momentos seguintes posso esquecer-me. E se for um bom dia posso esquecer-me de mim até ao anoitecer. Posso usufruir do café de uma cafeteira nova e maldita que partiu a pega e verto café com artimanhas de dois diabos no corpo. Depois posso fumar um cigarro. Ou dois.
Se for um bom dia posso ainda ler um livro, ou continuar o de ontem. Acabá-lo seria bom. Ler Paul Celan, Alejandra Pizarnik e Thomas Bernhard e pensar “sofredores, viram a vida de frente, estiveram face a face” e deduzo, pelas correntes paralelas que as frases formam ao longo da página que o rosto era horripilante.
Isto tudo, num bom dia. Por volta do meio dia e meio vergo o meu peito sobre a grade da varanda e o sol aquece-me o rosto, numa temperatura tépida, ainda matutina e leve, e semicerro o olhar para procurar a mota do carteiro. Num bom dia ele traz-me uma encomenda de livros – “O Livro por Vir” de Maurice Blanchot – e quando se aproxima da porta de entrada do meu prédio o coração acelera um pouco e explode em adrenalina quando o som da campainha me acorda da vertigem.
Num bom dia não sei quem sou. O problema é das noites, um homem não esquece quem é na bruma do apocalipse. E com a memória vem a melancolia, por isso, que venha rápido um bom dia.
Márcio Luís Lima