A Igreja Católica pende muito para o sofrimento, à mistura com carradas de resignação e outras tantas de masoquismo, como já vimos na crónica nº 17. Esta propensão é doentia e justifica a expressão de “beber o cálice da amargura”. Ora, nem Jesus Cristo, o filho de Deus ou o cordeiro imolado (na crença essencial do cristianismo), aceitou, de bom grado, o destino brutalmente cruel e extremamente doloroso da crucificação. Jesus Cristo, sendo Deus, teria encarnado, segundo a crença cristã, com o destino atribuído pelo próprio Pai: o de morrer numa cruz, para remissão dos pecados da humanidade. De facto, assim aconteceu, após um dia de incrível amargura, com acusações terríveis que ele próprio não negou diante dum tribunal humano: a de ser filho de Deus e a de destruir e reconstruir o Templo de Jerusalém em apenas três dias. Pior: foi esbofeteado, foi escarnecido, foi flagelado, foi sujeito ao peso dum madeiro, foi perfurado com pregos nas mãos e nos pés, verteu água e sangue. Teve sede, muita sede. Era humanamente impossível aguentar tanto sofrimento. Daí que Jesus, quase a chegar ao último suspiro, se tenha manifestado com estas palavras: “meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Mas, antes, porém, já Jesus implorava: “Pai, tudo te é possível, afasta de mim este cálice! “.
Esta expressão do “cálice da amargura” é, pois, bem conhecida dos cristãos. No cristianismo pós primeiros quatro séculos, decorrida a perseguição e o martírio generalizado infligido pelos romanos, o sofrimento de todos os dias (e pior, o autoinfligido) passou a ser bem-vindo, considerando os “doutores” da Igreja que “o padecimento purifica e faz crescer a pessoa humana na sua caminhada até ao paraíso”. Nessa linha doutrinal, foram constituídas ordens religiosas que proclamavam, e continuam a proclama, ser o sofrimento o caminho de santificação. O prazer, a felicidade e a alegria não entram nestas reservas de santidade. Isso é tão claro que o atual Papa Francisco (conhecido pelas suas ideias de uma evangelização autêntica, como assim era no início do cristianismo) escolheu, em contraponto, como título de uma exortação apostólica as significativas palavras de “Evangelii Gaudium”, a alegria do Evangelho.
Não admira, pois, que toda a temática da sexualidade seja o calcanhar – de – Aquiles da Igreja Católica (não das demais Igrejas Cristãs) e das outras confissões religiosas abraâmicas (ou do Livro ou monoteístas, o judaísmo ortodoxo e o islamismo) embora estas sem a rigidez mórbida do catolicismo tridentino e até anterior. Só este aspeto, como ilustrativo: estas duas religiões permitem o casamento dos rabinos e dos imãs muçulmanos, estes últimos podendo casar-se com até quatro mulheres. Em outros aspetos também são ultraconservadoras, sobretudo para com as mulheres.
Isto vem a propósito da moderna inquisição criada nem sei por quem, relativamente “aos abusos sexuais às crianças e jovens” alegadamente perpetrados, desde 1950, por clérigos e religiosos da Igreja Católica Portuguesa. Creio que é a primeira vez que esta Igreja, a qual sempre beneficiou de um enorme poder terreno, está vergonhosamente sentada no banco dos réus e a beber, publicamente, o cálice da amargura, a esponja embebida em vinagre e fel. Mas, desta vez, o “cálice da amargura” não tem qualquer semelhança com o do seu Mestre. Pelo contrário.
Os católicos conscientes estão perturbados, tristes, desorientados. A religião a que pertencem, como batizados pelo menos, cerca de 80% de portugueses, tem sido a mesma religião que vem atacando, com desproporcionada ferocidade, há séculos, os por ela chamados “pecados da carne”. Ela própria foi cair “no lamaçal da ignomínia” como eram tidas as práticas contra dois dos mandamentos da Lei de Deus: guardar castidade nas palavras e nas obras (6º mandamento) e, também, nos pensamentos e nos desejos (9º mandamento). Há que ter em conta que o catolicismo não copiou fielmente o decálogo do Antigo Testamento. E o que é a Castidade? Castidade é o mesmo que pureza, ou seja, no limite da santidade, a ausência absoluta de práticas sexuais. O mais incompreensível é que milhares e milhares de gerações do mundo católico, inclusive a minha geração e algumas mais posteriores, foram educadas nesta camisa de forças e dentro de estúpidos preconceitos.
Parabéns aos clérigos católicos que tiveram a coragem de quebrar as regras (não evangélicas nem ditadas por Jesus Cristo) que lhes cerceavam o direito natural de amarem e de serem amados, de serem pais e criarem uma família. Essa opção livrou-os, sem dúvida alguma em muitos casos, do cometimento de atos indecorosos como são os abusos sexuais de crianças, esses sim, considerados por Jesus como os pecados mais condenáveis e sórdidos. E os padres pedófilos também não serão vítimas das regras impostas pela máquina da Igreja? Veremos isso na próxima crónica.