O direito à esperança, à indignação e à coragem

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manuel ribeiro

ALEGAÇÕES FINAIS – 2

Ainda sobre a minha crónica anterior (os escândalos na Igreja Católica, na atualidade), é minha opinião que quem tem um pouco de consciência e acha que a mensagem de Cristo é de enorme valor não deve ficar calado perante os perigos de destruição dessa duas vezes milenar instituição religiosa.
Desta vez, e não é única, os tão proclamados inimigos da Igreja não vêm de fora: nem são ateus, nem agnósticos, nem luteranos ou protestantes, nem cátaros ou albigenses, nem romanos, gregos ou judeus, nem fariseus ou gnósticos e nem mesmo muçulmanos.
Quando eu era jovem, havia lá na freguesia um senhor distinto e viajado (estamos nos anos 50/60) que dizia, muitas vezes, o seguinte: “Serão os padres a acabar com a própria igreja”. E a profana ladainha continuava, num crescendo de raiva.
Claro que eu não ficava contente com tais impropérios, pelo contrário, e concluía que o dito senhor era um incréu que teria bebido tais ideias no longínquo Brasil, ainda com resquícios do liberalismo do século XIX e do então mais recente republicanismo anticlerical. O certo é que nunca mais esqueci, em seis décadas, tais palavras de tom profético.
Tenho pensado nisso, com alguma angústia. Creio que é sempre um choque terrível quando nos confrontam com acontecimentos em tudo contrários àquilo que sempre aceitamos como verdadeiros, designadamente os valores norteadores da vida e que fazem jus à imagem das pessoas e instituições que os professam e propagam. Mesmo sabendo que a história da Igreja tem muitas épocas negríssimas, inimagináveis para quem não as conhece, as igrejas (no caso presente, as cristãs e, acima de tudo, a Católica) ganhariam mais credibilidade (no momento atual, essa credibilidade está fortemente abalada), se se dedicassem, sem censuras de qualquer espécie, ao debate livre entre fieis e à límpida transmissão do que é exclusivo da sua missão: a ligação com Deus e os mistérios da vida, da morte e da eternidade, a verdadeira fundamentação evangélica da sua doutrina e da sua razão de ser.
É lógico que a frequência, nos templos e sacristias, cada vez mais percentualmente numerosa de mulheres em relação aos homens, deixe nítidas marcas das preferências e gostos femininos, tais como os costumeiros adornos florais, as grinaldas achinesadas, os enfeites populares, as imagens milagreiras, as procissões com toque profano, a profusão de cores berrantes e um especial encanto pelo ritualismo cénico, tudo isso em desfavor – repito: em desfavor ou prejuízo – da reflexão sobre a diversidade de ideias, das dúvidas mais que aceitáveis, do estudo da história sagrada e do debate libérrimo sobre a mensagem cristã. Este desequilíbrio não é saudável, para além de estranho numa organização que, ao contrário da doutrina de Jesus, considerado seu fundador, até vem sendo totalmente segregadora das mulheres. É de ter em conta que o Papa Francisco, considerando indisfarçavelmente que pretende ordenar mulheres no diaconado (este é apenas um ponto da sua vontade reformadora), tenha criado uma comissão mista (H e M, consagrados e leigos), para estudar a história da Igreja no respeitante ao papel das mulheres nessa instituição. E a conclusão foi clara: na história da Igreja aparecem mulheres diaconisas!
Mas, mesmo que não tivessem existido na história, qual o problema de as mulheres não poderem, ainda na atualidade, ascender à ordem do diaconado e mesmo do sacerdócio e por aí acima? A meu ver, só seria benéfico para essa organização religiosa. Só que a organização da Igreja é ronceira na tomada de decisões e mostra uma enorme incapacidade de adaptação aos novos tempos. A palavra “evangelho” significa “boa nova”, pelo que a inovação faz parte dessa cultura evangélica, só que a comodidade de estar parado, inativo, acrítico, naquele doce não fazer nada, ou não correr riscos, seguidista, sobrepõe-se ao martírio da crucificação na cruz, à prática da humildade intelectual e da modéstia na maneira de ser, na obscuridade do serviço aos outros e no afastamento das vanglórias.
“A esperança tem duas filhas lindas: a indignação e a coragem. A indignação ensina-nos a não aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-las”.
Este pensamento, e norma de ação em todas as situações, não pertence a nenhum individualista, nem relativista, nem hedonista (palavras frequentes nos documentos da Santa Sé, com forte peso conservador). Pertence, sim, a Santo Agostinho, Bispo de Hipona e Doutor da Igreja Católica!

N D – Com esse seu segundo texto, este nosso ilustre colaborador e amigo pessoal de há longa data, volta ao convívio de nossos leitores passados cerca de dois anos de ausência. É bem vindo pela sua escorreita e criteriosa escrita a que já há anos nos havia habituado e a AURORA reclama — sendo caso para proclamar BOM FILHO PRÓDIGO À CASA PATERNA TORNA.

(Imagem: “Gaudium Press”)

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