O “Fórmulas”

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Aníbal Alcino

Eu nasci na freguesia de Argoncilhe, Santa Maria da Feira, onde, com apenas três meses de idade, vim viver, transportado numa cestinha à cabeça de minha mãe, para a Rua de S. Miguel, nº 32, num terceiro andar (águas furtadas). Frente à minha casa ficava a Escola Primária, onde obtive e fiz o exame da 4ª Classe, com distinção.

A poucos metros de distância da minha residência ficava a Cadeia Civil, onde foi prisioneiro o célebre escritor Camilo Castelo Branco, a Cadeia Militar e o Jardim da Cordoaria, onde tinha um monumento o talentoso Júlio Dinis que escreveu, entre obras primas da literatura portuguesa, “As Pupilas do Senhor Reitor”.

Frente ao Jardim da Cordoaria ficava a Universidade do Porto, onde passava a maior parte do tempo, visitando o seu Museu de Ciências Naturais, pleno de bichos das mais variadas espécies, e animais selvagens, devidamente embalsamados. Isto, e esta coincidência era o encanto para os olhos da minha infância dos sete aos dez anos de idade. Aí comecei a viver com os seus estudantes de capa e batina preta que, por graça ou brincadeira, simpatizaram comigo, ensinando-me muitíssimas “fórmulas” de Química que eu, inocentemente, decorei, porque tinha uma memória prodigiosa. Foi daí que veio o meu apelido de o “fórmulas”, que ficou para toda a vida.

Eles diziam-me: “Olha, a fórmula da água é H2O – tu dizes: agá dois Ó! Do ácido sulfúrico é SO4H2 – tu dizes: ésse ó quatro agá dois! Do cloreto de potássio é CLO3K – tu dizes: sê ele ó três capa!”

É claro que eu não sabia ler as fórmulas e só dessa forma os estudantes a entendiam!

“Se te perguntarem o que é o PH, tu dizes: É o lugarítimo do inverso da concentração hidrogeniónica. A fórmula da injecção 914, tu dizes: É dióxido-amido-arsenobensol-monometileno-sulfatoxilato de sódio”.

E por aí fora, umas dezenas delas que os estudantes, adultos de capa preta e batina, me meteram na cabeça. Ao mesmo tempo iam-me ensinando, também, a desenhar, ou a copiar os rostos dos colegas finalistas para os livros de fim de “curso”. Desenhava-os a lápis, de perfil, e cobria-os a tinda da China preta, com uma peninha de pau com bico de aço. Às tantas, comecei a verificar que tinha uma habilidade manual, igual a algum deles, e comecei a desenhar, igualmente, as caricaturas dos finalistas, que me davam rebuçados como paga ou compensação…

Eu tinha, nessa altura, nove anos, mas aos seis já lia um jornal de fio a pavio, que o meu pai, depois do trabalho como carpinteiro, me ensinava a ler, depois da ceia, à noite, à luz de candeeiro de petróleo porque, nesse tempo, ter electricidade era um luxo. Claro que eu não entendia o conteúdo dos textos que vinham publicados no “Jornal de Notícias”, que era só comprado aos domingos.

Um dia, os estudantes de capa e batina levaram-me para o centro da cidade, exactamente para o café e pastelaria “A Brasileira”, defronte ao Teatro Sá da Bandeira, para comer umas torradas com café com leite, mas logo de frente à nossa mesa, sentou-se a famosa e jovem artista de Teatro e Cinema, chamada Beatriz Costa. Eles, os estudantes, de marotos, disseram-me: “Vai àquela senhora, de cabelo às ripinhas, e pergunta-lhe se ela quer saber fórmulas de Química?”

Assim fiz, e na minha inocência, perguntei-lhe: “A senhora quer saber fórmulas de Química?”

– O quê, meu menino? – ela riu-se às gargalhadas – Ora diz lá!

Eu despejei o saco: “A fórmula da água é agá dois ó” – etc., etc., dezenas delas…

A Beatriz Costa ria-se, ria-se, e eu depois acrescentei: “Também lhe sei fazer o retrato, ou a cariocatura” – e tirando de um pequeno caderno de folhas brancas (A4) comecei a desenhá-la…

– O quê, meu menino?… Tu vais-me desenhar a cara?!

– Vou, pois!

– Quantos anos tens?

– Nove!

– Ponha-se a senhora de perfil!

– O quê?

– De lado! – disse eu.

Desenhei-a e ela ficou espantada. Deu o desenho a ver às coristas que a acompanhavam e disse-me: – Chama aqui o empregado da pastelaria!

Ele veio, de bandeja prateada na mão, e ordenou: “Diga ao seu patrão que enquanto eu aqui estiver a representar no Teatro Sá da Bandeira na Revista “Arre Burro”, vocês todas as tardes dão um lanche a este rapazinho, torradas e café com leite, ou um pastel, o que ele mais gostar, que eu pago! Ponham na minha conta”.

Deu-me um beijo, um bilhete para o teatro-revista, e ficamos amigos para sempre. Souber, depois, que ela chamou o jornalista e crítico teatral, de nome Emílio Joubet, que escrevia no “Jornal de Notícias”, a propor-lhe a “questão” de eu passar a ser seu filho adoptivo e de me levar, entretanto, para o Brasil, onde ia trabalhar, custeando a minha educação. Claro, o meu pai não aceitou e eu, nessa altura, fiquei triste, porque não me importava nada em ir com ela…

Mais tarde, muito mais tarde, a senhora Beatriz Costa veio do Brasil para Portugal, a fim de viver num dos melhores hotéis de Lisboa. Para que ela se recordasse de mim, pintei a óleo, numa grande tela, com moldura e tudo o mais, e enviei por via Correio, com uma carta em que lhe dizia: “Lembra-se do Fórmulas? Hoje estou a acabar o meu curso superior de Belas Artes em Pintura, na cidade do Porto. Ofereço-lhe este meu trabalho como prova do meu carinho pela sua pessoa, como mulher e como grande atriz. Gostei muito de a ver trabalhar no filme “Aldeia da Roupa Branca. Um abraço!”.

Ela respondeu-me numa outra carta a agradecer. Infelizmente, passadas que foram algumas semanas, morreu… Como todos nós, um dia. Ainda mme passa pela memória uma cena desse filme em que ela cantava:

“Ó rio não te queixes

Ai o sabão não mata,

Ai até lava os peixes,

Ai põe-nos cor de prata.

Três corpetes, um avental,

Sete fronhas, um lençol,

Três camisas do enxoval,

Que a freguesa deu ao rol.”

 

As lágrimas vieram-me aos olhos…

 

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