O meu rio menino

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O caminho era estreito, aos altos e baixos, e a erva cortada à toa deixava raízes grossas que faziam tropeçar. Chegar ao rio, debaixo do sol escaldante do meio-dia, era penoso para os mais velhos e mais trôpegos. As crianças também dispensavam a caminhada.

Faltava ainda transportar mesas, cadeiras, liteiros, lancheiras, garrafas e garrafões. O piquenique era a rigor. Não faltava nada. O tractor foi a salvação. Meteram-se lá dentro as crianças. Agarrem-se bem, não se debrucem, esta brincadeira não me agrada nada, todas as semanas morrem pessoas debaixo de um tractor, os miúdos adoram isto mas é perigoso. No meio das crianças, o avô e a bengala. Atrás e à frente uns e outros a rirem-se da paródia. O avô acenava com a bengala e com a mão, simulando a bênção papal. Vou no papa-móvel.

Alguém para quem quase tudo é poesia via ali um filme do neo-realismo italiano e no avô o Nino Manfredi. Outros diziam ser uma cena do Kusturica ou lamentavam não poder pintar aquela mancha de cor e movimento.

Lá em baixo, o Vigues, um dos rios da minha infância, saltando de pedra em pedra por entre choupos e salgueiros, descansando aqui e ali em arenosas poças, acolhia os forasteiros com a frescura e o cantar das suas águas cristalinas. Dos recantos esquecidos do pensamento saltou, num impulso, o Chão do Moinho, a moega de madeira, o taramelar das mós, a flor da farinha, os lírios amarelos, os juncos das margens com que se enfeita a simplicidade e a grandeza de uma criança, os alfaiates, as rãs da cor do musgo a dar aos foles e as libelinhas… No meio do piquenique, o pensamento andava por ali à solta. Subia o rio, descia o rio, procurava os raizeiros, os poços, as flores cor de fogo do Outono, os fantasmas espelhados de galhos e ramadas das margens, as amoras selvagens, os cardumes em corridas sinuosas. As crianças saltaram para a água. As mesmas crianças, o mesmo riso, o mesmo sol nos olhos e nos cabelos. Meninos de todos os tempos, meninos de outros tempos, meninos de pé descalço que o rio ensinou a nadar, meninos que sem medo pulavam das carvalhas para os poços mais negros e mais fundos. O mesmo rio, o mesmo sol que nasce na serra e se dilui no mar. A vida num abraço.

O piquenique tinha de tudo, aperitivos, bacalhau, boa carne, pão branco e pão de milho, fêveras grelhadas por mãos sábias, bolos apetitosos, o invulgar bolo verde de espinafres, frutas variadas, vinho e águas refrescadas no rio. Já pelo cair da tarde, com o sabor da saudade, regressámos.

Coube-me o privilégio de vir também no atrelado do tractor, virada para trás, para o rio, para o pôr-do-sol. O meu pôr-do-sol… 

Debaixo de arbustos e castanheiros que à socapa me fustigavam a cabeça, soltou-se de novo o pensamento e corri atrás dele sem parar, num torvelinho de imagens que fez soltar o meu esquecido riso de criança.   

NR: a autora não acompanha o novo acordo ortográfico

Eva Cruz

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