O milagre da morte

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José Veiga Torres

Quando, nos noticiários quotidianos, ouvimos falar das centenas de soldados mortos, diariamente, na guerra da Ucrânia, que são milhares semanalmente, muitas dezenas de milhares por mês, e quando lemos que foram mortos muitos milhões na II Guerra Mundial e outros muitos milhões nas depurações nazis e nas depurações bolcheviques, a morte banaliza-se. Já, quando nos chegam imagens de mortos assassinados e abandonados nas ruas, estremecemos, porque, então, a morte ganha um sentido trágico que nos perturba e nos faz pensar. Se pensamos, a morte humana apresenta-se-nos como uma grande riqueza de sentidos, e faz-nos viver.

A expressão “o milagre da morte” é título do capítulo  de um livro de alguém que pensou, seriamente, sobre esse acontecimento que é a morte. O autor desse livro foi um filósofo francês, não muito conhecido, Vladimir Jankélévitch (1903-1985), um nome que nos reporta para o Leste, para a Rússia, embora tenha nascido em Bourges. Seu pai, Samuel Jankélévitch, médico de origem judaica, vira-se obrigado a fugir da Rússia, em período de antisemitismo.  Aluno brilhante no percurso académico francês, aos 23 anos, Vladimir era Agregado e professor de Filosofia. Ensinava na Universidade de Toulouse, em 1936, quando o Governo fascista e pró-nazi de Vichy o demitiu. Nessa altura, entrou para a clandestina Resistência à ocupação nazi da França, onde se empenhou de tal modo que mereceu dos seus pares a classificação de herói. Sempre modesto na luta, como, depois na vida académica. Terminada a guerra, voltou para a Universidade, primeiro em Lille, depois em Paris, na Sorbonne, onde lecionou durante 27 anos, até 1978.

Não há nenhuma experiência humana tão forte como a violência da guerra para perceber o melhor e o pior da humanidade. Certamente que a experiência familiar de exílio, por segregação étnica e religiosa, depois, a experiência da humilhação profissional, por segregação ideológica, finalmente a experiência da luta clandestina no “maquis”, em defesa da sua pátria e contra a barbaridade nazi, fizeram de Vladimir Jankélévitch o lutador que foi contra o racismo e contra o antisemitismo, e o grande filósofo das questões morais. Os temas dos seus livros são bons evocadores dessas questões: “A Má Consciência” (1933), “Acerca da Mentira” (1943), “O Mal” (1947), “Tratado das Virtudes” (1949), “O Puro e o Impuro” (1960), “A Morte” (1966), “O Paradoxo da Moral” (1981). É num dos capítulos do livro “A Morte”, que versa o tema do «milagre da morte”.

Talvez se estranhe que num semanário de âmbito regional, apesar dos seus irrecusáveis pergaminhos, se abordem reflexões tão abstratas, aparentemente, sem qualquer relação com os problemas do quotidiano. Pensar assim indicaria que o nosso quotidiano é tão banal que não merece ser pensado. Ora, se o ser humano precisa de alguma coisa para ser verdadeiramente humano é de pensar, e de pensar-se. A superação humana da sua condição animal dá-se pensando-se.

O acontecimento a que chamamos “morte”, queiramos ou não, está todos os dias nos noticiários e nas nossa conversas e, frequentemente, nas nossas apreensões, porque adoecemos, porque adoecem os nossos familiares, porque o tempo de vida se nos vai encurtando (quem isto escreve, felizmente, está em vias de completar 92 anos de vida), mas, apesar das apreensões, temos a obrigação de viver e de pensar, porque pensar a vida e pensar a morte é uma atitude de humanidade. Se a vida é um milagre, a morte também é um milagre. 

A morte é um milagre porque não é um acontecimento ordinário, uma mera inevitabilidade biológica, como a do simples animal, é um acontecimento extraordinário; não é mera consequência de determinismo da natureza, tem consigo uma carga histórica da criatividade com que, humanamente, bem ou mal, alteramos e superamos os condicionalismos da pura “ordem natural”, transformando, intencionalmente, o mundo e a vida, e nos alçamos a uma outra ordem supra-natural, que está na origem das celebrações com que acompanhamos o decorrer da vida e a sua invisível continuidade.

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