O mundo dos sem-abrigo

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José Veiga Torres

Há um mundo de gente nas nossas cidades que só conhecemos como “sem-abrigo”, a quem, por descanso da consciência, às vezes damos alguma moeda,  porque nos consideramos generosos, mas com quem não queremos conviver, que não desejamos perto de nós, porque traja mal, porque cheira mal, porque pensamos que talvez seja agressivo, porque nos incomoda.

No entanto, trata-se de gente com direito à mesma dignidade que desejamos e reclamamos para nós próprios. Efetivamente, o aspeto mais lamentável de que os “sem-abrigo” são vítimas é o da perda de dignidade. Pensa-se, geralmente, que a perda de dignidade dos “sem-abrigo” se deve a alguma malfeitoria que tenham praticado ou a algum vício de que não quiseram libertar-se. Alguns casos de “sem-abrigo” poderão corresponder a situações dessas, que os afastam da convivência normal de seus familiares e amigos, e da possibilidade de obter emprego remunerado, que lhes permita pagar ou alugar um teto. 

Quem não puder alugar um teto, por minúsculo que seja, vai dormir na rua, perde a privacidade, não tem onde se lavar, nem onde satisfazer necessidades básicas; degrada-se visualmente, envergonha-se de si, e afasta-se ou é afastado das outras pessoas. Não lhe dão trabalho, tem de procurar comida, talvez no caixote do lixo, vira arrumador de carros, pede esmola, tem de suportar os malévolos comentários que lhe dirigem, (“porque não vais trabalhar?”) ou a permanente humilhação dos olhares de compaixão que lhe dirige  quem tem casa onde dormir e o não conhece, e o julga perigoso, ou, no melhor caso, fracassado. A dignidade que se recusa ao “sem-abrigo” acaba por ser interiorizada por ele, que, de experiência e experiência, resvala para a perda completa da auto-estima, para a desumanização, onde só a desconfiança impera.

A situação trágica dos “sem abrigo” é consequência da má relação que as pessoas e também as instituições estabelecem com quem, sem ter culpa, tem “azar” na vida, o que pode acontecer a quem menos se espera. O mundo dos “sem-abrigo” merece-nos ser conhecido, até para nos conhecermos melhor a nós próprios, na nossa relação com eles. Um livro recente, “Diário de um sem-abrigo” (ed. Oficina do Livro, Lisboa, 2022) deveria ser leitura obrigatória, por razão da nossa consciência cívica, e muito mais por razão da consciência cristã. É um conjunto de 14 crónicas testemunhais de alguém que teve o azar de se tornar um sem-abrigo, e nos conta como é esse invisível mundo numa cidade como Lisboa.

 O autor, um técnico administrativo numa empresa de Contabilidade, de 54 anos, que, sem apoio familiar, perdeu o emprego, sem qualquer indemnização da empresa falida em que trabalhava, tendo deitado mão de vários trabalhos em que, pela idade, era preterido por indivíduos mais jovens, sem dinheiro suficiente para viver e pagar renda de casa, ao fim de meses de atraso viu-se despejado. Na rua, viu-se obrigado a perder a vergonha para alinhar com outros sem-abrigo, aprender a pedir esmola, a dormir no chão mal aconchegado, a não ter onde lavar-se, a sentir o olhar de insensibilidade, de compaixão, ou de desprezo de quem por ele passava, a ver as parcas roupas sujas a desfazerem-se, a não poder entrar em lojas nem instituições, a sentir a degradação da sua dignidade, entre a já degradada dignidade dos outros sem-abrigo, de cujo modo de vida nos dá conta. 

Numa das suas crónicas, o autor conta-nos: «Eu já não tinha os chamados sonhos comuns que todo o ser humano tem…não vou  dizer que sonhava em viver de uma forma que não fosse como um cão, pois existiam cães que viviam melhor do que eu…esse tipo de pensamentos e conjeturas nasce na mente de uma pessoa como eu era. Depois de, numa noite um cão urinar na manta onde eu dormia, junto aos pés, fitei os olhos dele e pensei: “Este cão é como eu. Ou serei eu que sou como ele?”Dei por mim a dizer-lhe em voz alta que existiam cães com melhor sorte do que ele. Nessa noite, acabou por dormir junto de mim, depois de eu lhe oferecer  meio papo-seco já duro com uma tira de carne de vaca dura e fria, que me tinham dado, horas antes, num carro de apoio. Tinha fome e frio como eu e olhava para mim da mesma forma que eu olhava para ele» (Diário de um sem-abrigo,  pp.. 178-179). Este sem-abrigo, teve, um dia, a sorte de chegar a um albergue municipal, onde encontrou compreensão e apoio para refazer a vida sob um teto, onde pôde contar-nos o seu drama e o de tantos outros a quem recusamos a dignidade a que têm direito.

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