O país e os valores

A. Lobo de Carvalho
A. Lobo de Carvalho

Lembro-me que, aí pelos finais dos anos 80, uma devassa actriz muito conhecida no mundo do cinema, por Xixolina, estreou-se na política activa com a sua eleição para deputada ao parlamento de Itália, carregando todo um passado profissional nada compatível com a função para que fora eleita, o que causou algum delírio na classe política daquele país. Não sei bem por que motivo, mas creio que tendo a ver com a preservação do prestígio e da imagem da Assembleia da República, foi mesmo o seu nome citado, numa das sessões plenárias, pela deputada Helena Roseta, uma senhora de carácter forte que expressa sempre as suas posições públicas com frontalidade e sustentabilidade.

Porque desprezo a hipocrisia social, sou contra aquilo a que se chama politicamente correcto. Sei que muita gente pensa como eu, mas fala em voz baixa talvez com receio de ferir susceptibilidades. Mas a verdade é que os factos alimentam um certo gozo, passam-se imagens nas redes sociais e muito poucos levantam a voz para verbalizar o que lhes parece ridículo. Julgo que a nossa reacção deve ser expressa sem medos, porque, quem se exibe publicamente de forma libertina e provocadora, sabe muito bem os efeitos que provoca e até goza com a situação.

Prezo muito os órgãos de soberania do nosso país, de uma forma particular a Assembleia da República, porque dela emanam as normas legais que condicionam a vida de todos nós, cidadãos. Razão pela qual defendo que nela devam ter assento deputados isentos e acima de qualquer suspeita, que sejam exemplos para a sociedade e que se imponham pela sua capacidade cultural e pela sua reputação. Defendo, igualmente, que se os deputados são o espelho do poder legislativo do país devem, ainda, transmitir uma imagem pública que suscite o respeito e, porque não, a admiração dos cidadãos. Mas nunca pulsões negativas!

Contudo, não é assim que acontece e, daí, os comentários mais cáusticos que se fazem e se ouvem ou lêem, que não contribuem para a tal imagem pública de respeito, mas antes a comprometem e descredibilizam. Os partidos parecem não mostrar grande preocupação com a imagem que os deputados projectam e será por isso que alguns se apresentam com aspecto descuidado, sobretudo das esquerdas, levando a que as particularidades passem a ser entendidas como generalidade, o que não é justo. Os deputados, porque estão numa montra vista por todo o país e no estrangeiro, devem ter sempre a preocupação de apresentar uma imagem cuidada e possuírem dons de oratória adequados à função que exercem.

Por isso os lugares nas listas de candidatos devem ser bem ponderados.

Pelo que a entrada, nesta nova composição da Assembleia da República, de uma deputada gaga deveria ser repensada pela própria e pelo seu partido, não porque ela tenha culpa de ser como é – na verdade não tem -, mas porque, no exercício da oratória parlamentar, é exigível o dom da palavra, da exposição clara e rápida do discurso político e da reacção verbal oportuna, o que não é compatível com a gaguez, como é notório. A deputada em questão, não obstante essa deficiência na fala, pode até estar muito orgulhosa por ter chegado onde já chegou, mas deveria ela própria reconhecer esta limitação que a impede de desempenhar em plenitude o seu papel, a menos que pretenda uma visibilidade maior do que a sua ambição, expondo-se a comentários desagradáveis que vão passando em voz baixa e que bem poderia evitar.

Como também não é compatível com o prestígio da Assembleia da República, nem deveria ser admissível, a presença num acto solene de uma personagem de aspecto grotesco, parecendo ter vindo do mundo das bruxas ou das trevas, que nem se sabe o que era, quem sabe se um cicciolino?! Se há quem chame a isto tolerância, a mim parece-me, antes, uma verdadeira provocação ao órgão de soberania chamado Assembleia da República e ao país. Penso que, pelo que este órgão de soberania representa para os cidadãos, em circunstância alguma deve ser confundido com um circo, onde coexistem, aí sim, músicos, malabaristas, palhaços, animais diversos e muitas outras figuras, grotescas ou não, mas que merecem o nosso aplauso pelo esforço para distrair e alegrar os espectadores. O senhor Presidente da Assembleia da República, embora lhe reconheça o seu papel conciliador, não deveria ser permissivo a tais situações, porque gente desta não vem para fazer política séria, mas para desafiar valores.
É um facto que o mundo mudou, mas torna-se imperioso que não se percam os valores que, se já são raros em muitos sectores da sociedade, não podem deixar de se evidenciar nos órgãos representativos do Estado, sob pena de deixarmos de ter referências a que possamos recorrer. E um país sem referenciais é um país coxo. A Assembleia da República não pode transformar-se num circo, mas assumir-se sempre como um referencial de decoro e de respeito dentro do Estado português.

Foto: Velhos amigos

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