As Misericórdias acumularam ao longo dos séculos um valioso património cultural. Para melhor conhecer este património, a União das Misericórdias Portuguesas realizou em 2007 uma campanha de inventariação. Foi no âmbito deste trabalho que o investigador Pedro Raimundo se deparou com uma pintura de qualidade excepcional na igreja de Viana: uma Adoração dos Pastores assinada “Cº de B”. Intrigado pela sua qualidade, quis saber mais, mas deparou-se com uma grande falta de informação, apesar de alguns historiadores vianeses, como José Rosa Araújo, Manuel António Fernandes Moreira e Manuel Vale e ainda Vítor Serrão, já terem referenciado o quadro, sem que tenham conseguido muita informação sobre ele.
A investigação que fez levou-o a resultados tão interessantes que acabou por ser publicada no livro “Uma brisa holandesa na Foz do Lima. A adoração dos pastores da Misericórdia de Viana do Castelo e o pintor Cornelis de Beer”.
A tela foi pintada ao gosto maneirista, o que a coloca cronologicamente no século XVII e a sua qualidade denuncia ser de um autor estrangeiro. No livro, Pedro Raimundo explica como encontrou documentos no arquivo da Misericórdia (depositado no Arquivo Distrital) que dão como provável que o quadro tenha sido pintado em 1632, por encomenda de Manuel Ribeiro, provedor da Santa Casa, para a instituição de uma capela dentro da Igreja para devoção e jazigo da sua família.
Mas a sua investigação é bem mais aprofundada, porque esclarece quem é este Manuel Ribeiro: “um dos mercadores de Viana que se encontram activos no período de maior vigor da exploração do açúcar brasileiro” (p.34), com negócios entre 1618 e 1645, e chega mesmo a encontrar informações sobre a sua vida pessoal no livro de Fernandes Moreira: “Vivia no beco que tinha o seu nome, perpendicular à rua da porta de S. Crispim [provavelmente os actuais Beco do Caxuxo ou Rua Prior do Crato, que ficam junto a esta antiga porta, mesmo no fim da Rua Aurora do Lima]. Era casado com Maria Antunes Rei. Em 1618 fretou o navio Srª do Rosário para a Baía” (citado na p. 74) Segue-se um conjunto de outros navios fretados e a indicação de que era proprietário de seis casas em Viana, uma quinta em Cortegaça e várias propriedades espalhadas por Carreço e pelo termo de Barcelos. Este foi o período áureo da vila de Viana, em que se dizia que parecia com uma nova Lisboa, com mais de setenta navios no mar, que viria a terminar com o assoreamento da barra e o monopólio do comércio atlântico pela coroa, que secundarizaram o porto de mar.
Manuel Ribeiro era um destes nobres-mercadores que procuravam o lucro em todos os negócios possíveis, do comércio ao empréstimo de dinheiro, com uma lógica que anunciava o nascimento do espírito capitalista. Estes homens tornaram-se as figuras mais influentes económica e politicamente da vila e quiseram ostentar a sua riqueza. É assim que se compreende a encomenda deste quadro no estrangeiro, pela vontade de mostrar a capacidade de “adquirir um objecto de exclusividade, revelador da pujança económica e sofisticação do gosto do seu possuidor” (p.60).
No livro podemos perceber como, através de um quadro, é possível conhecer a sociedade vianense do século XVII, e as estratégias de poder que as suas figuras mais influentes desenhavam para se destacar.
Voltando ao quadro, Pedro Raimundo identificou o pintor como sendo Cornelis de Beer, nascido por volta de 1585 em Utreque, nos Países Baixos, que se radicou em Madrid, por razões políticas (a desagregação do império dos Habsburgo, com que Castela dominou os Países Baixos), religiosas (por ser católico numa região protestante), ou económicas (por ter mais mercado junto da corte do poderoso Filipe IV). Foi em Madrid que, num período em que Portugal e Espanha viviam em união dinástica (1580 – 1640), recebeu a encomenda de Manuel Ribeiro para pintar esta Adoração dos Pastores.
Esta “Brisa holandesa” é o resultado de uma rigorosa investigação histórica, mas que podemos ler quase como um romance sobre a vida em Viana e a sua relação com o Brasil e com Castela.
O livro, é também um convite a entrar na Igreja da Misericórdia e ver este magnífico quadro, que, quase 400 anos depois continua a poder ser apreciado e a falar de um período de prosperidade da nossa cidade.
Por indicação do autor, o texto segue a ortografia anterior ao novo acordo ortográfico.
João Alpuim Botelho