O voo triste de uma andorinha – reflexão sobre o luto migratório nos refugiados

Author picture

O século XXI tem sido desafiador em vários âmbitos. Nos dias que correm estamos focados no controlo de uma pandemia que ultrapassou todas as “barreiras” construídas por uma medicina evoluída e preventiva. Por outro lado, há vários anos que vemos o flagelo de muitas pessoas tentarem contornar “barreiras” em busca da sua sobrevivência.

Designámo-los de refugiados. Nome criado numa convenção das Nações Unidas realizada em 1951, após o fim da II Guerra Mundial. Estes não são mais do que imigrantes que saem do seu país para fugir à insegurança, à perseguição e à morte. Esta premissa, por si só, é um fenómeno gerador de stress e constitui um fator de risco para o desenvolvimento de patologia mental. O processo de adaptação de quem chega e de quem acolhe, implica um esforço cultural e social e que condiciona a interação entre os indivíduos. Por um lado, temos aquele que abandonou “tudo e todos”, não por escolha, mas por necessidade. É forçado a um exílio, não aonde quer, mas aonde pode. É-lhe exigido que “reaprenda a viver”, numa nova família, língua, cultura, terra e nível social. Estes são alguns exemplos, a que Anchotegui nomeou como os “7 lutos da migração”. Por outro lado, temos o papel do anfitrião, que se depara com a complexidade de como ajudar, seja pela dificuldade de comunicação, seja pela “ignorância” dos costumes, da moral e do léxico emocional da cultura do país de origem do acolhido. A filosofia ocidental apresenta uma visão dualista em relação ao corpo, em que há a cisão entre corpo e alma, matéria e espírito. Deste modo, a expressão de emoções através do corpo e não da mente tem uma conotação negativa e patológica, a qual designamos de somatização e que pode ser encontrada nos diferentes livros internacionais (ocidentais) de classificação e diagnóstico de patologia mental. Contudo, na cultura-mãe, de muitos refugiados, corpo e mente estão indissociáveis e ambos são responsáveis pela manifestação de sentimentos e emoções, como as que caracterizam um quadro depressivo. Por exemplo, em certas culturas asiáticas, simbolicamente é atribuído a cada órgão uma emoção ou sentimento, sendo o coração responsável pela alegria e o susto, o fígado e a vesicula biliar pela raiva, intestino grosso pela ansiedade, pulmões pela tristeza, o baço pela melancolia e os rins pelo medo. Se nos embrenharmos mais profundamente, verificamos que o termo “depressão” em certas culturas é vocábulo inexistente ou é expresso de distinta maneira. Assim, ainda que os síndromes psiquiátricos sejam fenomenologicamente universais, a expressão clínica dos mesmos é tão variada quanto a multiplicidade de sociedades existentes. Como tal, falar de Síndrome depressivo do imigrante, é ser-se redundante, estigmatizante e ignorar todas as particularidades discutidas acima. A abordagem terapêutica implica multidesafios, e mais uma vez, a superação de “barreiras” biológicas, individuais, coletivas, étnicas e sociais, fomentando uma atitude inclusiva e acolhedora, para que a “andorinha” sinta que pousou em porto seguro.

Isabel Vaz Soares
Médica Interna de Psiquiatria, ULS Guarda. Mestranda da UC Saúde Mental, Cultura e Ciências Humanas do Mestrado em Psiquiatria e Saúde Mental, FMUP.

Outras Opiniões

Os leitores são a força e a vida do nosso jornal Assine A Aurora do Lima

O contributo da A Aurora do Lima para a vida democrática e cívica da região reside na força da relação com os seus leitores.

Item adicionado ao carrinho.
0 itens - 0.00

Ainda não é assinante?

Ao tornar-se assinante está a fortalecer a imprensa regional, garantindo a sua
independência.