Obrigado Otelo

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Corria o inicio do ano de 1974, era eu estudante noturno da então Escola Industrial e Comercial de Viana do Castelo, quando, depois de ter adquirido alguma consciência política, comecei a entender melhor onde estavam aqueles que manejavam as grilhetas que segregavam e cerceavam a minha liberdade e, também, toda a liberdade de um povo, num tempo em que, mesmo durante o dia, prevalecia a escuridão. Essa tomada de consciência politica deveu-se principalmente a alguns colegas de turma que trabalhavam nos então Estaleiros Navais, com quem troquei livros, poemas, canções proibidas e conversas interessantes sobre politica. Fazíamo-lo no café e nos intervalos das aulas, ou mesmo no decorrer destas, nomeadamente de desenho técnico, onde tínhamos oportunidade de fazer os nossos trabalhos escolares, mas também de falar de política e fazer trocas dos materiais proibidas pelo regime vigente. Um dia, um professor, vendo aquele material proibido, muito preocupado, na sua aula disse-nos “não mostrem isto àquele professor! Tenham cuidado!”. Sim, esse era conhecido por pertencer à ANP (Ação Nacional Popular). Estávamos a brincar com o fogo, mas tínhamos consciência do que estávamos a fazer.

Jovem, tomei consciência de que tinha nascido para ser trabalhador durante uma vida, e combatente no ultramar. Da minha Escola sairiam os trabalhadores. Um ou outro, mas poucos, através de um enorme sacrifício, teria acesso a um sinuoso caminho para tirar um curso de Bacharel. Do Liceu, com direito a passadeira vermelha para a universidade, sairiam os futuros diretores. Mas que tinham eles mais do que eu, e mais do que os colegas da minha Escola? Pertenciam à casta dos privilegiados, enquanto eu, e a maioria dos jovens do meu tempo, tínhamos um caminho sinuoso para a nossa formação e, para poder progredir, os que conseguiam, tinham de roubar tempo ao sono. Eram assim os tempos difíceis da maioria dos jovens do meu país de então, que ousassem progredir mais um pouco. Na nossa Escola, os rapazes entravam pela porta das traseiras e, quando nos intervalos das aulas queríamos dar uma olhadela às alunas, por vezes inventávamos uma desculpa para ir à secretaria e assim passarmos por onde elas estavam. Mas se parássemos, um minuto que fosse, lá estava o contínuo com voz antipática e arrogante a perguntar “que estás a fazer aí, pá?” –  “vou à secretaria”, respondia com algum receio.

Até que numa manhã radiosa, em 25 de abril de 1974, levantei-me e fui trabalhar normalmente. No emprego, começaram a dizer que tinha havido um golpe de estado em Lisboa. Segui as notícias hora a hora e, ao final do dia, preocupado, lá fui para a minha Escola. Mas nesse dia não houve aulas. Aqueles que tinham já consciência politica, organizaram uma manifestação, onde todos gritamos e despejamos a revolta e a raiva escondida que trazíamos dentro de nós. No final, ali ao lado da Escola, em frente à GNR gritamos palavras de ordem, e ninguém ousou sequer travar os nossos ímpetos ou advertir-nos do que quer que fosse. A partir de então, passamos a entrar pela porta principal da Escola, anteriormente reservada apenas a professores, funcionários e alunas. E, se quiséssemos conversar com alguma aluna no átrio principal da Escola, já ninguém se iria opor. O ensino secundário foi mais tarde unificado, e todos passamos a ter iguais direitos e deveres.

Mais tarde, pensei em tirar um curso de engenharia. E como em Portugal a Universidade me estava ainda vedada, pois não pertencia à casta dos privilegiados, fiz a mala, abalei e, numa Universidade do Centro da Europa, através de uma bolsa de estudo, concluí a licenciatura e o mestrado em engenharia. Quando regressei a Portugal, fui admitido como assistente na Universidade Nova de Lisboa, onde permaneci durante 5 anos e na carreira académica, onde ainda hoje permaneço.

Toda esta transformação da minha vida, toda a liberdade de que passei a usufruir, eu e o povo de onde emano, toda a alegria que invadiu o meu interior e a de um povo em festa em 25 de abril de 1974, quando renasci para uma vida com dignidade, a devo, ou melhor a devemos, aos capitães de abril, representados, de entre outros, por dois inesquecíveis operacionais. Salgueiro Maia, que já nos deixou, e Otelo Saraiva de Carvalho, que tive o grato prazer de conhecer, abraçar e agradecer em Viana do Castelo, em 20 de abril de 2012. E, durante a viagem que fizemos os dois, quando o fui levar a Braga, deliciei-me a ouvir as histórias que me contou.

Como amante da liberdade que conquistamos, graças ao teu espírito libertador e à vida que arriscaste em prol do povo português e das ex-colónias, do fundo do coração, no dia triste da tua partida, com um ramo de cravos vermelhos a florir no pensamento, eu te digo, obrigado e até sempre Otelo. Obrigado, obrigado.

Gilberto Santos

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