Os cristãos e a política – 1

Picture of José Veiga Torres
José Veiga Torres

A consciência cristã, que tem de ser comunitária, portanto social, não poderá, nunca, viver alheada, nem indiferente em relação à Política. Isto é, ninguém que pretenda viver segundo os critérios de vida do Projeto de Jesus de Nazaré poderá, em consciência, viver indiferente à política, porque a política é indispensável para a ordenação e regulação justa da vida social. Mais que ninguém, os cristãos devem preocupar-se pela justa ordenação e regulação da justa vida social, ou seja, pelo Bem Comum, objetivo da atividade política.

A relação dos cristãos com a política nem sempre, ao longo da História, foi correta, nem justa. Foi até, durante séculos, verdadeiramente perversa, quando conluiada com políticas perversas. Nunca foi fácil a relação dos cristãos com a política, desde o início do Cristianismo e torna-se tanto mais difícil quanto mais as sociedades se vinculam ao princípio fundamental  da liberdade. A política, enquanto teoria e enquanto prática, levanta complicados problemas éticos que pesam em qualquer consciência responsável, como tem de ser toda a consciência cristã. 

As teorias políticas e as respetivas práticas são muito anteriores ao Cristianismo. Alguns séculos antes já os clássicos filósofos gregos discorriam sobre os melhores regimes políticos a adotar nas sociedades. O Cristianismo emergiu num contexto político muito complicado e muito conflituoso, numa Palestina politicamente dividida (Judeia / Galileia), sob dominação romana, com alguma autonomia judaica, em que o Governador Romano se coordenava com o Sumo Pontífice de Jerusalém.

Jesus de Nazaré, na sua atuação evangélica, nunca teve qualquer gesto de compromisso com qualquer das fações políticas da sociedade a que pertencia. No entanto, foi assassinado por razões políticas. Quem o condenou à morte tinha consciência de que a sua evangelização era profundamente política, sem, contudo, ter a pretensão de algum Poder. Cinicamente, quem o condenou pôs sobre a cruz o falso motivo da condenação (JNRJ = Jesus Nazareno Rei dos Judeus). Os poderes político-religiosos  perceberam que o movimento evangelizador de Jesus alterava profundamente as relações sociais, alterando o Poder, sem pretender ser Poder. Ainda é célebre uma frase de Jesus acerca desta questão. Os fariseus, com alguns partidários do rei Herodes, pretendiam encontrar partidarite, incoerência ou contradição política em Jesus. Tentaram, primeiro, lisonjeá-lo: «Mestre, sabemos que és verdadeiro… não dás preferência a ninguém, porque não tens em conta as aparências». Depois, propuseram-lhe um problema de ética política: «É lícito ou não pagar imposto a César?». Se Jesus dissesse que sim, estaria a legitimar a dominação romana, portanto, estaria contra o seu próprio povo, que reivindicava libertar-se do poder romano. Se dissesse que não, estaria contra a autoridade. Ao cinismo político dos que o interrogavam, Jesus respondeu: «Hipócritas, porque me tentais? Mostrai-me a moeda do imposto». Quando lhe mostraram a moeda, Jesus perguntou: «De quem é a figura e a inscrição desta moeda?». Eles responderam: «É de César». Jesus terminou a conversa com a célebre frase: «Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus». (cf. Evangelho de Mateus, 22,15-22).

Desde o século III até aos nossos dias,esta frase de Jesus tem servido para justificar a existência de dois poderes, em tensão permanente, nas sociedades influenciadas pelo Cristianismo, o Poder Cívico (secular) e o Poder Eclesiástico (sagrado). Foi, sobretudo, desde que o Imperador Constantino (313) achou que só com a força do Cristianismo poderia unificar, ideologicamente, o seu vasto império. Desde então, o Poder Eclesiástico e o Poder Cívico, ora em conluio, ora em conflito, alternando-se no poder sobre as populações, dominaram a política europeia até aos séculos XVII / XVIII, em que o Poder Cívico se foi libertando do Poder Eclesiástico e este se foi retraindo para um poder predominantemente cultural, espiritual e moral. A separação moderna destes dois poderes não é tão verdadeira quanto parece, e levanta sérios problemas de consciência a muitos cristãos. A interpretação daquela frase de Jesus deve ser outra. Dê-se a César o que é de César, o exercício da regulação social, sua função própria, que, histórica e praticamente, é poder de  dominação. Dê-se a Deus o que é de Deus, isto é, tudo, inclusive o que é de César. Porém, não se confunda Deus com o poder eclesiástico. Não se confunda Jesus com Poder. Jesus é conversão do poder, diluindo a dominação e implementando sociedades livres, plena e dignamente fraternas, na sua transcendência.

Duas temáticas do Evangelho (não se confunda Evangelho com Catecismo) esclarecem esta questão e merecem especial reflexão, em posteriores artigos, a da Liberdade e a da Comunidade. Não é possível política fraterna sem verdadeira e plena Liberdade, e sem verdadeira Comunidade. É com Jesus Nazareno que surge na História a plena dignidade da Liberdade fraterna, social e política, mas  que perturba os poderes cívicos e os poderes religiosos, por natureza dominadores, que bloqueiam a plena realização humana. Esta não consente qualquer forma de atividade política..

Outras Opiniões

Os leitores são a força e a vida do nosso jornal Assine A Aurora do Lima

O contributo da A Aurora do Lima para a vida democrática e cívica da região reside na força da relação com os seus leitores.

Item adicionado ao carrinho.
0 itens - 0.00

Ainda não é assinante?

Ao tornar-se assinante está a fortalecer a imprensa regional, garantindo a sua
independência.