Paraíso fiscal, purgatório moral…

José Carlos Freitas
José Carlos Freitas

Numa adaptação algo tosca – mas quase certeira – à frase atribuída a Platão, diz-se amiúde que “há duas coisas certas na vida: a morte e os impostos”. No entanto, a realidade indicia que apenas a primeira é, de facto, uma inevitabilidade. Já o pagamento de impostos, apesar de ser eufemisticamente descrito como uma “obrigação”, se afigura cada vez mais como uma mera e contornável opção ao alcance de quem, ironicamente, podia e devia, sem especial esforço, assumir e honrar as suas obrigações fiscais. Mas são precisamente esses os primeiros e principais prevaricadores que, tolhidos por uma ganância insaciável, empolada por uma falta de vergonha congénita e facilitada por um sistema fiscal e judicial mais permeável do que um rolo de papel absorvente, se escudam nos mais variados expedientes, artifícios e patranhas financeiras e fogem, vergonhosa e impunemente (como o diabo da cruz) ao pagamento de qualquer imposto devido. Tal como sucede com a lei judicial, também a lei fiscal parece ser demasiado forte e implacável com os “fracos”, e simultânea e estranhamente fraca e complacente com os “fortes”. Ou seja, é injusta, iníqua e inaceitável. Até quando? Ou, melhor, até quanto?

Embalados numa letargia resignada e conivente, lá vamos lamentando, entre inconsequentes conversas de café e perdidos em lugares comuns e chavões gastos, um ou outro caso mais gritante de um “artista” qualquer que desviou não sei quantos milhões para um qualquer paraíso fiscal. Apesar da relevância, a recorrência desses episódios é de tal ordem frequente que acabamos por tender a desvalorizá-los. Tudo o que existe em quantidade, perde valor. Perde impacto. Perdemos todos…

Mas eis que, um dia, “rebenta a bolha” e, com ela, a indignação geral, porque alguém descobriu a original “Caixa de Pandora” fiscal e, ui, imagine-se, a abriu. E o que é que lá estava dentro? Tudo e mais alguma coisa, exceto, claro, honestidade. Lá estavam inúmeros líderes mundiais – presidentes, reis, primeiros-ministros – entre outros políticos de maior ou menor calibre, assim como grandes empresários ou investidores. Figuras “importantes” e impolutas, que vestem seriedade na rua, e Armani ou Gucci nas festas, mas que surgem agora embrulhados numa miserável teia de esquemas de evasão fiscal, ocultação de património ou branqueamento de capitais, que ascende a muitos milhões de milhões de euros. Tudo gente séria com, certamente, mil e uma razões perfeitamente atendíveis para justificar o injustificável, e que vão beneficiando da absoluta falta de respostas estruturantes e consequentes à escala europeia e mundial. Ou de coragem. Ou de clarividência. Ou de vontade…

O escândalo “Pandora Papers” não nos trouxe rigorosamente nada de novo quanto à questão de princípio subjacente às próprias Offshores – a opacidade das transações, dos titulares e dos beneficiários. Trouxe-nos apenas mais nomes, mais esquemas e ainda mais indignação. Mas este não é um problema que se resolva com indignação. É um problema que só pode ser resolvido com musculadas e eficazes medidas de combate à evasão fiscal, quer por via de um estreitamento da malha da fiscalização tributária, mais atenta ao enriquecimento injustificado, por exemplo, quer ainda pelo abandono da complacência habitual (e cúmplice) do sistema judicial perante quem reiterada e impunemente prevarica em franco benefício próprio.

Partindo do pressuposto que um “paraíso” só o é se nos seus antípodas existir um “inferno” – tal como o “bem” só existe em oposição ao “mal” – torna-se fácil extrapolar esta raciocínio para a questão fiscal, percebendo-a simplisticamente. Ou seja, por cada paraíso fiscal de que beneficiem alguns, haverá necessariamente um inferno fiscal que penaliza muitos mais. Como? Através de uma lógica em cadeia: se parte da receita fiscal escapa à tributação, não resta alternativa que não a de subir à carga fiscal para compensar a perda, asfixiando a classe média e, em consequência, a economia. Legitimar-se paraísos fiscais, é merecer o purgatório moral…

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