Por linhas e por entrelinhas – Um centenário edificante 

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A 28 do presente mês e ano completam-se cem anos, sobre a celebração de uma escritura constitutiva de uma nova sociedade comercial, designada “Salgueiro e Veiga”, como proprietária da Mercearia Confiança, sita na rua Mateus Barbosa, nº 41-45. A nova sociedade comercial nascia em circunstância muito particulares e improváveis. Não nascia de um normal projeto comercial, mas uma negociação exigida por penosas circunstâncias em que nenhum dos dois sócios constituintes da sociedade tinha qualquer experiência comercial, nem apetência pelo comércio. O primeiro sócio, Manuel da Costa Salgueiro era um já provecto lavrador da freguesia de Subportela e Alberto Teixeira Veiga era um jovem artista, estucador, da freguesia de Deocriste, recentemente chegado do Brasil, para onde emigrara, três anos antes, e donde regressara com um modesto, mas suficiente pecúlio para a sua autonomia profissional.

Na véspera da escritura, a 27 de outubro de 1923, foi feito o necessário balanço para verificar o valor real do estabelecimento. Os géneros existentes na Mercearia valiam 7.634$934 (sete contos, seiscentos e trinta e quatro mil, e novecentos e trinta e quatro reis). Naquela conjuntura, o valor da chave era de oito contos. A escritura custara 125$000. O valor total da Mercearia era, assim, de 15.759$934. Um dos sócios, Alberto Teixeira Veiga, num escrito pessoal, confessava: “importa a minha parte, com o dinheiro da escritura, 8.879$950”. 

O primeiro dos sócios, Manuel da Costa Salgueiro, tornou-se proprietário do valor da Mercearia Confiança, por ser o herdeiro natural de seu filho Manuel Joaquim Salgueiro, falecido, inesperadamente, alguns dias antes, por doença fulminante. Antes de falecer, seu filho Manuel Joaquim ainda pôde escrever um memorando, dizendo: “Declaro ter nesta data recebido a quantia de, como sinal e por conta de 11.500$000 (onze contos e quinhentos mil reis) respeito ao trespasse do meu estabelecimento sito à rua Mateus Barbosa, 41,45 e que diz respeito a moveis e utensílios conforma relação fornecida”. Como data, o memorando só refere o mês de outubro, deixando em branco o espaço para a indicação do dia. Nesse memorando, Manuel Joaquim Salgueiro dá-se como único proprietário do estabelecimento, no entanto, se repararmos nos números, verificamos que a quantia que ele menciona não representa todo o valor financeiro do estabelecimento, faltando-lhe quatro contos, e não mencionando a origem desse valor.

Manuel Salgueiro, pai, sabia que os quatro contos não mencionados no memorando pertenciam a um amigo de seu filho, emprestados sem qualquer documento, seguros, apenas pela palavra e pela confiança da amizade que unia seu filho ao artista estucador Alberto Teixeira Veiga, sem que conste que este tivesse alguma expetativa de obter algum rendimento do empréstimo. Manuel Salgueiro, pai, diante de uma herança tão embaraçosa, prudente e honrado, mas incapaz, como simples lavrador, de deitar mão de um estabelecimento comercial na cidade, chamou para essa responsabilidade o amigo de seu filho, como sócio, honrando, assim, a parte do capital que a este pertencia. Manuel Joaquim da Costa Salgueiro, nascido em setembro de 1900, em Subportela, sem vocação para as tarefas agrícolas, sonhando ser comerciante, com 19 anos (em julho de 1919) embarcava para o Rio de Janeiro. Em dezembro de 1922, já com algum pecúlio e alguma experiência comercial, apesar da sua juventude, procurava comprar, em Viana, um estabelecimento comercial. Na Rua Mateus Barbosa, havia uma Mercearia Confiança, propriedade de António Fernandes Rego, de quem era empregado um tal José Gonçalves Pequeno, natural de Mazarefes, que estava à venda, exigindo oito contos pela chave. José Pequeno, que viria a ser um grande armazenista e empresário, naquela altura, não teria capital suficiente para comprar a loja em que trabalhava. Manuel Joaquim Salgueiro desejava comprá-la, mas só podia dispor de quatro contos. Recorreu, então, ao seu amigo Alberto Veiga, também jovem de 23 anos, também regressado do Brasil, que lhe pôs à disposição os outros quatro contos, a 20 de janeiro de 1923, permitindo que dois dias depois, por escritura pública, Manuel Joaquim Salgueiro se tornasse proprietário da Mercearia Confiança. Não era imaginável que oito meses depois, dia por dia, a Mercearia Confiança da Rua Mateus Barbosa, por morte inesperada do seu jovem proprietário, tivesse de sobreviver nas mãos de um artista, sem experiência comercial, mas com bom senso, inteligência e honradez. A 28 de outubro de 1923, Alberto Veiga celebra com Manuel da Costa Salgueiro, pai, (que mais tarde seria seu sogro), a sociedade Salgueiro e Veiga, e assume a gerência do estabelecimento comercial, mas já um ano depois (a 24 de outubro de 1924), desfazendo-se a sociedade, amigavelmente, torna-se o único proprietário da Mercearia Confiança, até ao seu falecimento, a 5 de janeiro de 1986, dia em que, com ele, fechou, definitivamente, um estabelecimento comercial cuja história nasceu de ousadia juvenil, de amizade e da honradez da palavra dada e confiada, há, precisamente, cem anos.

Manifestação de interesses – Alberto Teixeira Veiga casou com uma filha de Manuel da Costa Salgueiro, Rosa Meira Torres, e ambos criaram e educaram onze filhos, um dos quais é o autor desta memória, que se sente imensamente grato por poder, assim, recordar tão edificante centenário.

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