Presidenciais: aviso à navegação

José Carlos Freitas
José Carlos Freitas

Há duas coisas que se podem, sem mais, tomar como garantidas na vida. Uma é a morte, única certeza adquirida à nascença, e desfecho universal de todo e qualquer ser que tenha beneficiado da efemeridade do dom da vida. Outra é a reeleição de Marcelo Rebelo de Sousa. Goste-se ou não do candidato ora reeleito presidente, a inevitabilidade do resultado era tão certa quanto a dita que ninguém deseja, mas que um dia virá, democrática, taciturna e incorruptível como só ela sabe ser.

Numas eleições em que a dúvida sempre esteve muito mais subjacente à dimensão de uma vitória anunciada do que à sua própria consumação, poucas incógnitas subsistiam, reduzindo-se, todas elas, à distribuição dos restantes lugares do “pódio”, assim como à ordenação dos candidatos relegados a uma espécie de “liga dos últimos” presidencial. No limite, e assumindo-se os riscos de falibilidade de tal extrapolação, seriam uma espécie de “presidenciais raio-x”, capazes de aferir a evolução da profunda e, agora, irrebatível configuração do espectro político nacional que se vai operando a uma velocidade vertiginosa, infelizmente não no melhor sentido, nem necessariamente sob condução dos melhores protagonistas. Sendo certo de que essa será sempre uma extrapolação arriscada, ninguém negará que estas eleições serviram, para lá da (re)entronização de Marcelo, de barómetro de maior acuidade do pós-legislativas de 2019, com as autárquicas, tão próximas, como pano de fundo. Há, pois, lições e ilações a tirar. E há preocupações a crescer…

Comecemos pelo princípio. Reformulo: pelo lugar seguinte do pódio, pois ao princípio, na verdade, pouco mais haverá a acrescentar para além do que os 60% alcançados atestam. Logo às primeiras projeções ficou claro que a grande incógnita da noite gravitaria em torno da disputa do segundo lugar. É evidente que tal disputa por um lugar que é sempre muito mais simbólico do que substantivo, numa competição em que apenas o primeiro classificado leva o troféu, servirá para pouco mais do que para consolar o ego e estancar a ferida aberta bem no âmago da honra pessoal.

Mas há circunstâncias em que a honra e o ego valem mais do que qualquer troféu, cargo ou distinção. Na verdade, esta pequena (marginal) conquista de Ana Gomes não é de somenos, pois permitiu limitar o histerismo e o deslumbre exacerbado que já se saberia que viria (ainda mais) a terreiro se Ventura conquistasse o lugar. Ambos voltaram para casa com meia vitória, embora, convenhamos, a meia vitória de Ventura ser-lhe-á certamente muito mais saborosa, pois sabe bem que está em muito melhores condições para a capitalizar num futuro próximo. Lembra-se da questão da normalização da extrema-direita e dos riscos a essa (normalização) associados? Pois aí está ela. Se estivéssemos em legislativas, o Chega elegeria um grupo parlamentar de, no mínimo, 16 deputados. Agora antecipe quem seriam esses 16 deputados, e tem a mais perfeita materialização do que são esses “riscos associados”. Pois…

O resto… Bem, o resto é o que é. É um quase ocaso dos candidatos apoiados pelo BE e pelo PCP, que “sacrificam” dois eurodeputados – “jeitosos”, reconheça-se – em nome da degustação, se corresse bem, de um mísero prato de lentilhas regadas a ego partidário. O quase empate entre as candidaturas de João Ferreira, de Maria Matias e do amador simplório “Tino de Rans” evidencia bem o quão fraco, amorfo e inconsequente foi o desempenho de ambos. Vítimas da bipolarização da luta pelo segundo lugar, mas sobretudo porque comprometidos e entalados com os pesados cadernos de encargos dos respetivos partidos, foram incapazes de descolar do guião que os condenou à indigência eleitoral, nunca mostrando sinais da destreza que normalmente têm e pela qual são reconhecidos em qualquer dos debates em que participaram, e em que foram genericamente cilindrados pelos demais candidatos. Até pelo novato Tiago Mayan Gonçalves, cujo desempenho, confesso, superou as minhas expectativas.

Após estas presidenciais deixamos de navegar à vista, entrando agora em mar aberto, e, por isso, perigoso e incerto. A pandemia em fase crítica, a crise económica e social que lhe seguirá, e a rápida ascensão da extrema-direita populista são um sério aviso à navegação: no horizonte forma-se uma tempestade perfeita. E quem avisa…

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