Corria o ano de 1955. Pertenço à “Seitinha do Jardim”. Relembro o Aparício, o Carlitos, o Berto Casaquinha, o Sininho, o Manecas, o Atalaia, o Hernâni e seu irmão Manel, o Tone Jabardo, o Nanau, o Labita e outros, cujos nomes infelizmente já não recordo.
O nosso ponto de encontro era no largo do jardim, ao fundo da Rua Gago Coutinho (sem a estátua de Viana).
Daí, partíamos à aventura: Com lanternas (pilha, como dizíamos) e com velas para a gruta do Fincão, atravessando um viaduto que nos parecia perigoso; pelo escadório, até ao Monte de Santa Luzia, para jogar à espada, nas ruínas da Citânia. Depois, descer a corta mato e ver quem chegava primeiro ao jardim; cada qual, escolhia o seu trajeto; caça aos grilos, nas matas de Argaçosa (Areosa); nadar, nus, nos areais do rio, junto das Ínsuas. No jardim, no nosso jardim, nos momentos de ausência do jardineiro Pereira ou do zelador Bruno (que nos deixaram muitas saudades): jogar ao pião; jogar à bilharda; jogar às formas (botões), nas paredes do coreto; jogar às escondidas, nos buxus das antigas instalações sanitárias; jogar à bandeirinha; corridas de motas, feitas com um toco de vassoura, duas talas, uma roda e um volante feito na carpintaria da Rua de S. Pedro; o eixo da roda era sempre um parafuso, conseguido, depois das Festas D’Agonia, nas bancadas do fogo do rio; jogar hóquei, com sticks feitos com troços de couve galega; jogar futebol, com bola feita de trapos e meias de vidro de senhora, na condição de cada equipa ter o mesmo número de elementos que jogassem descalços.
Havia outro grupo no jardim, mais frágil, mas que se reforçava com um elemento externo, terrível e temível. Era o “Mijinhas”! Bravo, grande, e com uma arma demolidora: era uma tira de lona grossa, que manejava com destreza e que nos afugentava. Só muitos anos mais tarde, pude ver semelhante aparato. O chicote do Indiana Jones.
Um belo dia, jogávamos futebol. A minha equipa perdia. Estava furioso. Eis que chega o Mijinhas e ordena: “Acabou o jogo. Tudo daqui para fora, já. Este local não é vosso.” Num acesso de fúria, vou-me ao Mijinhas e mordo-lhe uma orelha com muita força. Até me soube a sangue! Quando sinto os pés no chão, aterrorizado, fujo para casa. Coração a bater, cheio de medo. O que eu fiz ao Mijinhas! Estou condenado!
Fiquei dois dias sem sair de casa. Ao terceiro dia, à noite, fui para o cais do Eduardo. Apareceu o Quim. Contei-lhe o sucedido e confessei os meus medos.
Resposta firme: “Está descansado. Amanhã trato disso. Há três dias que não remamos. Vamos remar.”
E fomos remar. Regressei depois a casa, feliz e sossegado.
No outro dia, pela manhã, bem cedo, voltei ao jardim. Livre, sereno. Que felicidade.
Meu Amigo Quim, meu Companheiro.
O teu coração deu tudo a todos.
Fernando Maciel