José Rosa de Araújo nasceu em Viana em 1902 e morreu em 1992, acompanhando, portanto, todo o século XX. De espírito curioso e irrequieto, desde cedo se interessou pelas coisas de Viana e do Alto Minho, o que o levou a percorrer os seus “Caminhos velhos e pontes” (título de um dos seus livros, de 1962), mas também os arquivos, principalmente da Misericórdia de Viana e o Municipal de Ponte de Lima, de que foi responsável, procurando sempre recolher informações, que gostava de partilhar em publicações como o “Serão”, uma crónica que escreveu sobre temas, acontecimentos, usos e tradições no jornal Notícias de Viana e que depois foram recolhidas em três volumes com o mesmo título.
O livro de que hoje falo, “Rasto de Sombras”, foi escrito em 1962 (com uma reedição em 2006) e relata um conjunto de 16 histórias passadas em Viana. O livro retoma o espírito dos serões à lareira, onde as histórias eram partilhadas em ambiente íntimo. Rosa Araújo falava sobre um tempo que já não tinha vivido (as histórias referem-se a um período que vai de meados do século XIX a inícios do XX) mas sobre o qual ainda havia muitas memórias, que ele recolheu e completou com informações retiradas dos arquivos que consultou.
As histórias que aqui conta relatam episódios com personagens importantes, como a breve passagem de Camilo Castelo Branco por Viana, em 1857, a convite de José Barbosa e Silva, para colaborar n’A Aurora do Lima, fundada dois anos antes, ou da vinda de Mouzinho de Albuquerque, em 1901, com o príncipe herdeiro D. Luís Filipe, que queria conhecer o reino que iria herdar (se não tivesse sido assassinado no regicídio que vitimou D. Carlos, seu pai, em 1908), ou ainda da “Revolta do Pinotes”, durante as lutas liberais, que culminou com a morte do tenente Pinotes, nas muralhas do castelo de Santiago da Barra.
Mas conta também histórias mais simples com a do “Antoninho enforcado”, morto por conta do homicídio do comerciante João Saraiva, no Faro de Anha, em 1836, ou do “Crime da Doura”, uma pobre mulher que terá assassinado o seu amante junto à praia, nas Pedras Ruivas em 1904.
Com o relato “Sangue na paisagem”, inicia um conjunto de seis histórias que envolvem a quadrilha do Laranjeira, um bando de homens que, tendo tido formação militar durante as lutas liberais, usou esses conhecimentos para aterrorizar as terras do Neiva em meados do século XIX, em assaltos com requintes que poderiam bem ser o enredo de filmes de acção, denunciando um ambiente de violência de que poucas vezes os livros falam, preferindo relatar o suposto bucolismo das paisagens e a pacatez da vida rural minhota.
O livro termina com “Demolições”, sobre edifícios vianenses notáveis desaparecidos.
Estas histórias são escritas num tom de livro policial que torna a leitura aliciante, misturando informação oral e erudita, com os caminhos, casas, alminhas e cruzeiros que conheceu, de que resulta uma grande riqueza de pormenores que o autor partilha com os seus leitores. Ficamos assim a saber mais sobre o ambiente e a vida quotidiana vianense de meados do século XIX: a forma como se viajava – do Porto para Viana, quando Camilo viaja nas diligências do Neves e tem de pernoitar em Barcelos “Onde tinha lugar a primeira muda de cavalos” (p.12); os caminhos que se percorriam, por exemplo, a estrada que liga Anha a Viana, onde se deu o crime do Antoninho, hoje alcatroada e com o pomposo nome de Avenida da Estrada Real, era um sendeiro “cortado em denso pinheiral, um feio caminho com a ramaria do pinheiral a ulular no alto, açoitada pelos ventos tempestuosos (…) com muito mau afamadouro, de feiticeiras e ladrões” (p.62), as feiras (p. 109); as profissões desaparecidas, como o tio Vicente, pedreiro que rachava o penedo para levantar paredes (p.28) ou o José Douro, que “era forneiro à rua do Espírito Santo, onde à força do suor do rosto conseguira um peculiozinho razoável” (p.29). São também muito interessantes as descrições das tabernas e vendas mal-afamadas, onde se reuniam os homens da quadrilha do Laranjeira ou onde Mouzinho se divertiu na noite que passou em Viana.
Com este “Rasto de Sombras”, José Rosa de Araújo transporta-nos a ambientes que no seu tempo já haviam desaparecido, mas que ele se preocupou em recuperar: “Usos, costumes, lendas e tradições somem-se com as últimas gerações ainda vivas. Um velho que morre leva com ele para a paz eterna um pouco do Portugal Vetus. É um mal? É um bem? Sabemos apenas que o futuro será diferente” (p. 105).
O tempo avança e se em “Demolições” se mostrava pessimista, aqui parece abrir um caminho de esperança para os tempos que viriam, que são os que vivemos hoje.
João Alpuim Botelho